Decênio de 1990
1999
PERENE MUTANTE
A unicidade da linguagem gráfica, a peculiar insubstituibilidade expressiva deste universo artístico, propicia desde os primórdios a sua permanência. A ampliação dos suportes e dos instrumentos garante sua ininterrupta renovação quer como produção seriada bem como para novas iconografias.

A informática e a fotografia foram encampadas (digitalizadas ou não) de dois modos: ampliando seu imaginário, onde a natureza desses processos fornece um elenco de metáforas inusitadas e, por outro lado, proporcionando em um novo tempo a multiplicação de originais, considerando-se a fluidez do curso da criação gráfica. Mesmo se com isso altera-se licitamente o conceito de "original", abrindo a possibilidade de se discutir conceitos de autenticidade, de nomenclatura, e de edição. Basicamente prevalece que a gravura autêntica não se configura apenas por meio da existência de uma matriz ou de uma imagem mas pela presença de um ideário. O pensamento visual do gravador tem particularidades tão peculiares que a utilização de novas "ferramentas" não altera sua qualidade essencial que será sempre de natureza gráfica.

Isto posto é indiscutível que novos caminhos abrem novas reflexões sobre procedimentos. Constatamos sua presença como uma linguagem de arte independente e dinâmica, insubstituível, apesar de sempre ameaçada, tal como o ballet, o cinema e a música de câmara etc. Convivendo num contexto multidisciplinar o artista se abriu para o registro de estímulos cada vez mais velozes, luminosos e brilhantes. As artes gráficas reagiram autofagicamente como um canibal que ao deglutir seu inimigo acredita adquirir as suas qualidades.

Se a pintura saiu do cavalete e a escultura do pedestal nada mais oportuno e verdadeiro como necessário que as artes gráficas, perenemente mutantes, devam sair dos livros e das vitrines para ganhar novos espaços de existência. Com a vantagem que o usufruto das novas tecnologias aprimoram o olhar e a percepção e adquirem infinitos horizontes. O imaginário se liberou para um convívio acessível de captação rápida ao encontro da essência do discurso gráfico.

A gravura em metal se dilatou pela sensibilização com laser na elaboração química (fotográfica) da chapa-matriz. A xilogravura ao praticar sua sulcagem imprime sua essência "matricial" e instrumental em grandes altos e baixos relevos sobre papéis compostos ou sintéticos ou ainda em superfícies de concreto ou solo cimento passando à vigência da arte pública, onde a seriação ganha novo conteúdo. Agora a "exposição" e a multiplicação se dão a partir do número de fruidores e não pelo número de edição. A matriz é única e a fruição é múltipla. É o número de observadores que lhe dá este sentido.

E finalmente a litografia, (a zincografia e eventualmente a serigrafia) sem a perda das suas qualidades, dilata sua sutilíssima gama de nuances cromáticas ao se envolver com a cibernética e reproduzir a idéia-matriz multiplicada num volume fantástico de tiragem onde a imagem foi pré-concebida (ou criada) mas não "retardada" pela execução manual. Se condensa num disquete que passa a ter caráter "seminal" para qualquer apelo de tiragem e veiculação.

Foi dinamitado o tempo e a platéia intimista da gravura? Sim. Foram prejudicados os valores gráficos?Não.

A prática, da ilustração permanece intocada enquanto a inserção direta da memória residual é introduzida como contraponto do discurso gráfico gestual.

Acreditamos que quanto mais a gravura se transforma mais ela se reafirma como a GRANDE MUTANTE.

Ao lado disso temos conhecimento de artistas isolados ou agrupados que, no México Central, no Norte do Brasil (cordel) etc; fazem seu exercício de sobrevivência por meio da gravura ao nível do cotidiano, com instrumentos rudimentares e sobre suportes modestos e descartáveis para consumo imediato com conotação de entretenimento e informação. São grandes comunicadores que permanecerão por centenas de anos fiéis a esta prática, por gerações e gerações intocadas garantindo a resistência e a evolução da gravura em renovado e infinito repertório.

Hoje se constroem mais aeroportos do que catedrais. Nós sabemos perfeitamente como construir uma catedral mas não precisamos mais delas. Isto não quer dizer que paremos de construir. Construímos e construiremos sempre para novas liturgias e com outros (novos) materiais. O ato de construir permanece, eterno.

A internet propicia uma fonte inesgotável de intercâmbios cognitivos, referenciais, sedimentados ou experimentais. Pode-se a qualquer momento recuperar variadas tradições pela sua vigência como também incorporar imagens ou percursos, sejam dispersos ou dissonantes. Elaborados ou não por nós passam a fazer parte do nosso cotidiano e do nosso conhecimento num piscar de olhos, até subliminarmente.

A ciência nos diz que nosso cérebro produz e reproduz com uma rapidez assombrosa milhares de pensamentos, combinações sucessivas, imagens e associações. Que se perdem... Será que não caberá à gravura como meio de expressão de arte, já no domínio da tecnologia de ponta, captar e se beneficiar deste córtex codex maravilhoso?

De qualquer modo a dinâmica do conhecimento só será válida quando não for apenas novidade, porém instrumento de conquista para o novo. Esta questão é sem dúvida avalizada pelas discussões e reflexões deste symposium.


Maria Bonomi, 1999.
BONOMI, Maria. “A Perennial Mutant”.
Grapheion, Prague, 3-4th issue, 1999.
1999
A FORMA
A Forma, <BR>VA, VB, VC, VD, VE, VF, <BR>xilografia, 1997A Forma, <BR>VA, VB, VC, VD, VE, VF, <BR>xilografia, 1997 [...]

O gravador é o artista que, na idade da informática, resgata a idade da mão e, nem por isso é anacrônico. Nesta perspectiva, Maria Bonomi retoma na série “Forma” questões permanentes do fazer artístico, construindo um universo pessoal, guiada por suas intuições, percepções e intelecções, à procura de soluções intransferíveis, que tanto podem levar à premiação de novas conquistas, como também à privação da satisfação do desejo do acerto. São os riscos e perigos na busca da artisticidade.

[...]

Maria Bonomi revoluciona a xilogravura brasileira. Para ela, o espaço geométrico, ligado à tradição da ilustração, não precisava necessariamente ser obedecido. A artista prova que a xilogravura aguenta dimensões maiores para uma leitura à distância, sem perder o encanto da descoberta das tessituras e harmonias que a aproximação do olhar proporciona. Maria arrisca inaugurar uma escala que abriga uma imagem monumental. Um grande desafio. Dimensionar fora dos padrões ortodoxos da xilogravura não apenas um aumento de área para construção de imagens de impacto ou de efeitos puramente formais ou apelos sensoriais banais. Sua intenção é libertar a xilogravura de sua genealogia em termos de formato e tratamento, dando-lhe uma dimensão urbana. Sair do livro para o mural. Ampliar os timbres como se fosse uma orquestra sinfônica na sua diversidade sonora.



Renina Katz, 1999.
RENINA, Katz. Maria Bonomi. A Forma.
[Folheto de divulgação], São Paulo, s/d.
1999
CINCO MOMENTOS DA GRÁFICA CONTEMPORÂNEA
[...]

Maria Bonomi, [...], prefere interferir diretamente na matriz (ou matrizes), organizando áreas, criando e propondo espaços inusitados parta os olhos do observador.

[...] A obra de Bonomi atesta a crença na capacidade do artista em, ao transformar a matéria sobre a qual atua, lançar a possibilidade de transformação do mundo.

[...]


Tadeu Chiarelli, 1999.
CHIARELLI, Tadeu. “Cinco Momentos da Gráfica Contemporânea”.
In: Gravuras Contemporâneas.
São Paulo, Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo, 1999.
1998
CONSTRUÇÃO DE SÃO PAULO
acima: A Construção de São Paulo, <BR>concreto, 1998<BR>abaixo: execução, 1998 Nesta Estação Jardim São Paulo, naqueles dois cubos concretos, metafísicos e suspensos que envolvem as bilheterias, acima dos trilhos elétricos, a cada seis ­minutos se dá a celebração da máquina e do homem, ou seja a emoção mágica da metropolitana.

Vivo a honra de brindar com uma paisagem ­subterrânea a tempestade de pessoas que ali passará nesta virada do século! Entre um trem e outro alguém levantará os olhos e verá a sua história, com começo, meio e fim, da qual ele faz parte como ex-pedestre, agora transeunte das vísceras da terra do Jardim São Paulo; em São Paulo, Capital, 2ª metrópole do mundo em tamanho, vocação e pretensão!

O que será que Mário de Andrade pensaria para a sua cidade debaixo da terra? O que ele gostaria de imaginar nesta incômoda e vermicular posição?

Sabendo que acima dos trilhos eletrificados, ­dinamizados e energizados haverá sempre, na praça do antigo jardim, alguém passeando em “silêncio nortista (...) regado a ventinho do mato que vem do Jaraguá”.*

Resposta! uma antropofágica mistura de casa e porão onde será visto o desenvolvimento das raízes das árvores (elas crescem para cima e para baixo exatamente como prédios crescem em janelas e alicerces) e dos edifícios através do tempo da imaginação.

O cubo esquerdo (3m x 6m x 2,70m) conterá em duas faces relevos modulados de concreto gravado (aqui só o ferro, o aço e o cimento resistem) tal qual rabiscos feitos a lápis grosso ilustrando numa carta familiar a penetração na terra das curvas vegetais, a famosa montanha e a poderosa cidade se delineando ao fundo. A quina, aresta do cubo, integrou-se nesta paisagem e faz parte do desenho.

O cubo da direita (de igual dimensão) igualmente em suas duas faces mais iluminadas falará do que já se tornou a pauliceia. Placas de concreto justapostas, recortes geométricos, perspectivas sufocadas por suas febris esquinas duvidosas, feéricas alturas que nem se avistam...

Tudo isto em sobreposições gravadas em altos e baixos relevos na proporção máxima de sulcos de 3 cm em placas ou perfis sobrepostos de 7 cm afixados sobre o fundo.

Tão bom saber que esta “história” ficará dita no espaço coletivo que hoje é o mais visitado museu contemporâneo da América Latina: as estações do METRÔ paulista.

Tão bom saber que ali “tudo é limpo que nem toada de flauta (...) gente se quisesse beijava o chão sem formigas”.*


Maria Bonomi, 1994.
[Painéis iniciados em 1994 e concluídos em 1998.]
* trechos do poema “Manhã”, de Mário de Andrade.
1998
ALÉM DA ESSÊNCIA
Sobre a Essência: <BR>Os 7 Horizontes do Homem, 1998 [...]

Tengo grande afecto por la naturaleza, tengo grande afecto... [Tenho grande afeto pela natureza, tenho grande afeto...]

A intuição iluminada de Roberto Guevara ­espelhou no barro/terra a unidade artístico-cultural americana. Pelas suas mãos precursoras – agora, nas dos curadores e colaboradores da Bienal, seus seguidores – instala-se, a partir de um “certo momento”, uma transformação histórica dentro da arte universal. A postura “colonizada” do público e dos produtores de arte que servem à estética e a um marketing “importados”, é rejeitada; o público americano liberta-se, juntamente com os artistas, mesmo os imigrados, que estando na América (norte, centro, sul), não podem mais se identificar com o que deixaram para trás; ­propostas indagadoras, já existentes há milênios, ­quando integradas à contemporaneidade, restituem o fio condutor da autêntica arte americana. O barro, com suas infinitas linguagens, privilegia um renascimento autônomo de amplitude imprevisível. Na duração, na plasticidade e no significado do barro confirma-se o ­projeto sustentador da arte americana. Dedico a Roberto Guevara, com gratidão, esta minha obra, mas além da essência, um altar carregado de energia.


Maria Bonomi, 1998.
BONOMI, Maria (texto). III Bienal Barro de América.
“Maria Bonomi. Sobre a Essência: Os Sete Horizontes do Homem”. Maracaibo, Centro de Arte de Maracaibo Lia Bermudez, jun. 1998 /São Paulo, Memorial da América Latina, set. 1998.
1998
SOBRE A ESSÊNCIA
Sobre a Essência: <BR>Os 7 Horizontes do Homem, 1998 Raros artistas têm a coragem de intervir radicalmente em sua trajetória, alterando o status quo, trocando as certezas que os legitimaram por outras ousadias indagadoras, sem medo de comprometer um passado reconhecido. Depois de quebrar algumas normas vigentes da gravura, suporte que a consagrou como uma das artistas mais expressivas e premiadas internacionalmente, Maria Bonomi incursionou pelo objeto, mural, escultura e chega à instalação impondo uma nova ordem à sua produção. Seu nomadismo rebate mais uma vez no plano do suporte. Coloca em prática a idéia de que a arte altera, dá forma e sentido à energia do mundo. Coloca os elementos vivos em comunicação, sem privilegiar nenhum deles, a matéria pulsa como energia pura e tem a função de plasmar o discurso. Nesse imenso sanduíche, o módulo é múltiplo e faz uma representação conceitual das camadas do planeta. Transforma o propósito de segredo do centro da terra em camadas, criando.um universo particular. A crosta terrestre, fatiada, exposta em espécie de vitrina sobreposta, cria. uma instalação em que o instrumento de análise da linguagem é o próprio meio. O resultado formal surge do casamento multimídia entre a escultura, instalação e a gravura que aparece sugerida nos vestígios impressos no topo do objeto, como se os sulcos de uma matriz nos lembrasse que Maria é sempre uma gravadora, não importa o caminho que escolha.

[...]


Leonor Amarante, 1998.
AMARANTE, Leonor (apres.). III Bienal Barro de América.
“Maria Bonomi. Sobre a Essência: Os Sete Horizontes do Homem”.
Maracaibo, Centro de Arte de Maracaibo Lia Bermudez,
jun. 1998 /São Paulo, Memorial da América Latina, set. 1998.
1998
IMIGRAÇÃO E SUBSTITUIÇÃO
Imigração e Substituição, <BR>alumínio, 1998.<BR>Salão de Entrada do <BR>Palácio dos Bandeirantes. Tento tornar possível a visualização do movimento dos povos, de pessoas singulares, grupos, hordas... Através das marcas deixadas pelas transformações que realizam. No mundo físico e espiritual e simbólico do seu agir, do seu arrastar-se e deixar registros vitais, invasores ou coexistentes do status quo. Alguns marcham, outros correm, são guerreiros ou são nômades. E um belo dia fixam-se num território definitivamente. Anulam-se e renascem, produzem novos contornos, acolhidos ou não, implantam-se, demarcam, circunscrevem, lavram – imigram e fecundam a terra e o espírito. É um ato sagrado, de posse mas também de fusão e de morte. São traços retilíneos ou curvos, compõem-se conforme as resistências, as topologias, conforme o que encontram. O imigrante é também o portador do conhecimento, agente da transformação irrecusável: novos percursos. [...]

Trabalhei a argila que estendi no chão em moldes ajustados como uma verdadeira lavoura. Usei dois instrumentos próprios, só faltava semear e regar. Gravei com as mãos e as ferramentas o enredo de histórias que eu sabia. Pequenas, particulares ou grandes momentos épicos. Fui sulcando o que me contaram.

O X central da placa A (Imigração) é em alto relevo polido: a presença pré-existente a ser conquistada. O primeiro sinal que o homem faz ao chegar, ao se apropriar de algo. A marca central. E começa a fermentar, a garimpar em sua volta. Fora do que está “demarcado”.

No painel B (Substituição), já o X é espaço provado e consumado, em baixo relevo, já resultante das forças que vieram mescladas e dominaram quanto lhes resistia. Ao mesmo tempo o território externo está rejuvenescido pela mixagem, já é futuro...

[...]


Maria Bonomi, 1998.
1996
IDENTIDADE DAS MEDUSAS
Medusa, xilografia, 1990 [...]

Como artista interpreto, faço o relato de alguma experiência marcante, a crônica visual das emoções do dia a dia. Registro “de verdade” cada encontro que me emociona.

Nada foi mais desconcertante do que um mergulho em águas marinhas, no meio dum bando de medusas! São gelatinosas águas-vivas que me envolveram fugidias, navegando com toda sua abrangência de vísceras siderais... Não havia como sair nem como voltar, o barco já ia longe, quando percebi fazia parte do grupo flutuante, nadávamos juntas e todas se moviam grudadas e relutantes (durou um segundo, durou uma vida) até completadas aquelas braçadas que me separavam da ilhota. Momento terrível e ao mesmo tempo deslumbrante.

[...] Sobre cada uma a luz incidia de um ângulo diferente e, com a refração de água, refletia milhares de variações coloridas. Moviam-se. Respiravam. Pude olhar dentro delas, até o outro lado e pelo meio onde são mais intensas e corpusculares, no centro parecendo um céu estrelado; nas extremidades são como pontas de cabelos.

Por muitos e muitos anos, em época certa, quando as água-vivas em algum ponto do mar realizavam sua dança reprodutora, eu, onde quer que estivesse, tinha as costas e o abdome habitado por uma infinidade de pontinhos vermelhos, irritantes, resultado daquele involuntário contato marinho.

[...]

Um velho marinheiro libanês me reconciliou com as medusas, disse-me ter sido honrada com este convívio, era símbolo de uma escolha protetora, uma verdadeira revelação da sorte, teria, a partir do contágio, corpo fechado à maneira grega.

Cada medusa retratada detém esta energia protetora e por serem as xilografias como as medusas, semelhantes entre si mas infinitamente multiplicáveis, serão sempre únicas quando comparadas uma com as outras, imagens símbolos do encontro com a boa sorte que deve ser “elaborada pela escolha”.


Maria Bonomi, 1996.
Bonomi, Maria (apres.). Identikit da Medusa.
São Paulo, Espaço Cultural Monte Líbano,
22 mar./21 abr. 1996.
1995
A PAIXÃO DE MARIA BONOMI
acima: Memorial da América Latina, <BR>São Paulo, 1989<BR>abaixo: Maria Bonomi, 1970 Os cabelos lisos e grisalhos emolduram seu rosto em movimentos revoltos, reforçando sua conversa ­animada. Maria Bonomi fala das gravuras e seu ­significado com a mesma paixão que sente ao ­­criá-Ias. O barulho e a confusão da fervilhante São Paulo são facilmente esquecidos na sua sala de estar, calma e elegante, com paredes cobertas por gravuras feitas pelos amigos e uma porta que se abre para gramados ondulados e jardins tropicais. O leve sotaque do seu português e a sua figura alta e esguia são ­definitivamente aristocráticos, mas as surradas roupas de trabalho - de algodão - e a simplicidade da casa e do atelier, mostram a determinação com que Maria Bonomi deixou de lado tudo que não fosse essencial, afim de se concentrar na arte, nos interesses sociais, nos assuntos estritamente políticos de uma cidadã do Brasil, da América do Sul, do mundo.

[...]

Para promover o seu ­objetivo de criar arte pública, Maria começou a usar os seus blocos de madeira gravada também como formas para concretagem de murais ou paredes de lugares públicos em São Paulo. Aquela audaciosa transformação do entalhe gravado em relevo urbano ajudou fisicamente a construir um senso de modernidade.

[...] Jacob Klintowitz declarou explicitamente o que aquilo significou para a gravura brasileira: “Ela transformou a gravura de imagens para livros em imagens para paredes, capaz de envolver o público no efeito da linguagem absolutamente visual. Mudou, fundamentalmente, a relação do público com a gravura e a relação do artista com o ato de gravar”. Estendeu-se ainda sobre a importância conceitual de tal mudança, explicando: “Acho que o conceito total de arte de Maria Bonomi transmite uma nova, percepção de destino. Fica evidente que a sua escala é um padrão brasileiro, uma concepção filosófica das possibilidades humanas e do apoio que o Brasil pode oferecer aos seus habitantes”. De fato, ele credita à Maria Bonomi a contribuição decisiva para a conscientização da sociedade brasileira de seus direitos básicos, particularmente, uma vida na qual o campo estético é uma realidade diária, o ideal humanístico de que a identidade precisa da arte para dar forma aos sonhos. A sensibilidade de Maria Bonomi à madeira (quando menina sonhava em ser carpinteira), seu conhecimento técnico e seu delicado senso estético permitem-lhe transformar temas simples, como os sulcos de arados nos campos cultivados em gravuras de notável dignidade. Sua luta determinada pela gravura e pela humanidade continua.

Ela ainda aceita aprendizes e, neste momento, está planejando fazer da nova bienal brasileira de gravura uma competição internacional. Energia, autoridade, vigor, paixão - nas gravuras e na sua vida. Falando recentemente sobre sua casa e atelier, Maria disse:
“Se precisar definir um estilo, diria que é simplesmente afetuoso, nada além disso”. Seria difícil encontrar palavras mais apropriadas, que a descrevessem tão bem.


Carol Pulin, 1995.
PULIN, Carol. “The Passion of Maria Bonomi!”.
Contemporary Impressions, The Journal of the American Print Alliance,
s.l., vol 3, n°2, Fall, 1995.
1995
A XILOGRAVURA EM MARIA BONOMI
[...]

Ele [Lívio Abramo] dizia que a gravura era como uma pulsação: você abrindo a luz, trabalhando ao contrário, com este processo peculiar de se pensar uma gravura... E eu nunca mais consegui fazer outra coisa, não consegui mais pintar. Foi algo tão envolvente que eu permaneci dentro deste processo até hoje...

[...]

A xilogravura não tem volta...: você perde definitivamente a linha malfeita, o traço malfeito, o corte... Não dá para voltar atrás, e eu acho esta sensação de limite muito boa, eu gosto muito disso.

[...]

Eu fico com uma faquinha..., cavando madeira...

Eu também não vou dizer que eu não me pergunto por quê... Para quê?..., mas eu não consigo não fazer... Eu não sei se eu que faço a gravura ou se é a gravura que está querendo ser feita...

[...]


Maria Bonomi a Renato Palumbo Dória, 1995.
DÓRIA, Renato Palumbo.
“A Xilogravura em Maria Bonomi e Renina Katz”.
Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n. 2, 1995/1996.
1994
As Quatro Idades do Homem. Partitura.
Lar Golda Meier, São Paulo, 1994 A INFÂNCIA - Partitura 1
O suave encantamento inicial. A vida fazendo-se delicadamente, formas imprevisíveis do caos passando por Transformação rumo à promessa. A magia.

A JUVENTUDE - Partitura 2
Explode a realidade orgiástica de auto descoberta, do poder infinito, o implacável comando de intuição. Tudo é permitido nesta hora, a dinâmica do tempo não oferece perigos. A saturação.

A MATURIDADE - Partitura 3
Não mais um dever mas uma conquista. A coragem da colheita e da semeadura. Percurso de passos com a certeza da verdade individual. A saciedade.

A VELHICE - Partitura 4
A complexidade da vida é maravilhosa! Com o tempo somam- se respostas à nossa curiosidade e liberta-se o ser das desordens e dos impedimentos. Plenitude no equilíbrio de Sabedoria: Finalmente conquistamos nosso lugar no cosmos. A conclusão.


Maria Bonomi, 1994.
1993
MARIA BONOMI
acima: A Intrusa, litografia, 1988<BR>abaixo: Tropicália, xilografia, 1995 A gravadora Maria Bonomi foi a primeira artista sul-americana a ter uma sala especial na Bienal de Ljubljana, na antiga Iugoslávia. Na ocasião, ela estava na companhia de alguns dos principais artistas de nosso tempo, todos com este direito através de grandes premiações: Pierre Soulages, Yozo Hamaguchi, Antoni Tapies, Victor Vasarely, Henri-Georges Adam, Robert Rauschenberg, Janez Bernik. A experiência gráfica de Maria Bonomi é expansivamente abrangente. Ela dedica toda a sua energia à tarefa de produzir formas, zelar pelo ofício do artista e descobrir novas aplicações da criatividade às múltiplas atividades da sociedade contemporânea. A sua vivência não se deslocou do seu interesse primordial pela gravura, mas incorporou áreas crescentes de exercício de sua personalidade, como o muralismo, biombos, cenários, figurinos, diagramação, ilustração e atividades didáticas. Ela se enriquece no fazer e acrescenta, com o seu exemplo e dedicação exclusiva, uma lição pessoal de integridade.

Na gravura, Maria Bonomi é pioneira do grande formato, conferindo à cópia um novo valor de comunicação. A sua gravura é uma resposta à moderna arquitetura de amplos espaços de vivência.

É uma gravura que sai do livro para a parede e de uma contemplação individual para uma proposta de participação permanente e coletiva.

Maria Bonomi é a mais fiel e transgressoras amante que a xilogravura teve no Brasil. Ninguém, como ela, foi tão seguramente agarrada à tradição da velha técnica e, ninguém como ela, enveredou por tantas experiências e tentativas de estender o antigo método de impressão a outras funções e atuações sociais. Bonomi é uma gravadora que permanece xilografa, dedica-se à madeira, faz o sulco, supervisiona a cópia, mergulha na matriz como um exercício definitivo de aprofundamento da experiência sensível. As fotos de Maria Bonomi na floresta amazônica fazem parte da história da nossa arte, origem de sua série amazônica. É uma imagem fácil de guardar: lá está Maria Bonomi, uma mulher grande de traços fortes, cabelos soltos, movimentados pelo vento, inclinada sobre um enorme tronco de árvore abatida. Ela, como uma artista, segue o rastro da destruição e recupera madeiras para a reciclagem mais nobre, a da linguagem artística. Como um desenhista que percorre o campo de batalha e registra e transforma em arte os corpos amarfanhados. A cronista da nossa época.

Depois de mais de 40 anos de xilogravura, pode ser dito que, para Maria Bonomi, essa foi uma experiência ilimitada. E depois que as suas formas assumiram e deram origem a uma discussão sobre a escala brasileira, essa experiência tornou-se ilimitada para nós também. A artista do sulco - que ela levou para locais e materiais inesperados - marcou profundamente o país com a sua atividade. O seu desejo de multiplicar o sulco em materiais e superfícies não habituais, teve um efeito além de sua expectativa, pois o sulco gravou-se, igualmente, na sensibilidade nacional.


Jacob Klintowitz, 1993.
KLINTOWITZ, Jacob. Os Novos Viajantes.
São Paulo, Sesc, 1993.
1990
ESPAÇO ESCAVADO.
XILOGRAVURAS DE MARIA BONOMI
acima: A Ilha (Como um Navio Errante),<BR> xilografia, 1988<BR>abaixo: Ressinto Dor, xilografia, 1989 Nenhuma modalidade artística apresenta maiores contrastes e antíteses do que a gravura. E nesse ­território, a xilogravura destaca-se em particular, porque sua essência fundamental é exatamente paradoxal oposição.

Oposição entre a delicadeza e a fragilidade do ­resultado final – a xilografia em papel – e a solidez e concretude dos recursos utilizados para consegui-la, numa arte que usa do durável para representar o perene na leveza do suporte.

Oposição que faz trabalhar o fundo através da subtração de material, pelos antônimos do claro e do escuro, ao invés de operar no plano com áreas, linhas e contornos.

Oposição alcançada não somente pela presença/ausência do negativo e do positivo, que se contrapõem na superfície entintada “versus” a limpidez do papel, como também por ser a própria execução deste gênero de gravura inteiramente baseada em contrários.

Uma vez que o gesto guia os instrumentos cortantes – a goiva, o formão – não acrescenta, e sim retira a matéria, a concepção mental de uma xilogravura acontece, já no inicio, via uma inversão. As áreas têm que ser pensadas não sob um aspecto imediato que satisfaça as percepções, tanto cognitivas quanto sensíveis do artista, mas em função de um avesso total, representado pelo vazio – verdadeiro esconderijo da criação.

Extraída daí – do hiato desconhecido e brumoso que rege a criatividade – as formas na xilografia são resolvidas em seus negativos nas matrizes de madeira, num entalhe plano, seco, rígido, característico da grande produção das gravuras feitas por este processo. É aqui que entra, pela sua diferente criação, a obra da gravadora e artista plástica Maria Bonomi.

Porque a artista não se limita ao simples registro de sulcos e entalhes. O vazio para ela não é o vazio.

É o espaço retalhado, talhado e perseguido incansavelmente por meio de fluidas e precisas incisões – índices marcantes do seu pleno domínio do sulco recortado. Recorte este que vai iluminar a matriz de uma beleza plástica que a transforma em outra obra de arte, anômala e autônoma, singular em sua origem, visto que surgiu como veiculo para uma linguagem diferente.

Nestas reentrâncias cavadas, a obra que seria efetuada em duas dimensões tira partido do estéreo – do sólido, tridimensional – aflorando então uma gravura que nasce escultura.

Assim, suas xilogravuras primam pelo tratamento especial dado às matrizes, as quais, em primeira instância, se mostram como peças escultóricas, altamente elaboradas com riqueza de entalhes, plano a plano, num trabalho cujo cerne é o espaço escavado.

[...]

Impressas em uma escala gigantesca, segundo os restritos padrões [dos anos 70], suas obras foram um divisor de águas na história da xilogravura.

[...] Saltam aos olhos os caracteres sígnicos e emblemáticos de suas gravuras, definitivamente abstratas e incorporando o sentido social de “gravuras manifestos”, que atuam duplamente: uma vez – na exigência de mostrarem-se, constituindo-se, portanto, manifestações de atitudes desafiantes e num segundo tempo – como manifestos específicos da linguagem da xilogravura, renovada pelo caráter monumental de seus trabalhos e se impondo pela simples presença.

[...]


Nilza Procopiak, 1990.
PROCOPIAK, Nilza (cura). Espaço Escavado.
Xilogravuras de Maria Bonomi.
In: IX Mostra da Gravura Cidade de Curitiba.
Curitiba, Palacete Leão Júnior, 18 out./16 nov. 1990.
1993
Balada do Terror, xilografia, 1970 A xilogravura de Maria Bonomi a partir da década de 60 desbordou o caráter íntimo, confessional da gravura que então se praticava no Brasil. No entanto, Bonomi não perdera de vista o engajamento político da gravura de seu mestre, Lívio Abramo. [...] Desde os anos 60, a opressão que estendia, à direita e à esquerda, no muro de Berlim ou na ditadura do Brasil, é enfrentada pela artista como um testemunho. Sua gravura é seu combate e sua denúncia. Seu projeto era erigir uma voz, ou refazer uma palavra silenciada. Esse discurso adota uma severidade para evitar determinadas “figuras de estilo”. Opta por desenvolver imagens gráficas como argumentos visuais, orientados por manobras táticas de persuasão. Formas impressas, imagens gravadas condensam uma energia gráfica sobre grandes planos brancos. Ferem os vastos planos de luz. Agem como cicatrizes que fixassem, nestes pontos, o olhar; que prendessem o movimento do olho ali, onde a liberdade não flui. Esse processo de simbolização das imagens abstratas, já deixa entrever que Bonomi dispensa as evidências da figuração como origem semântica. A grande dimensão das gravuras define-lhes uma “luta corporal” no plano da percepção: ver é poder projetar o próprio corpo num espaço, é projetar a fantasia de dissolver-se em alguns desses abismos visuais de uma “Balada do Terror”. Sacrifica o artifício da mimesis pelo enredamento num discurso de signos. Essa politização do abstrato é a dimensão maior de sociabilidade da obra de Maria Bonomi.


Paulo Herkenhoff, 1993.
HERKENHOFF, Paulo (apres.). Ultramodern. The Art of Contemporary Brazil. Washington D.C., The National Museum
of Women in the Arts, 2. apr./1. aug. 1993.