2009
Maria Bonomi
Graças à iniciativa da Embaixada do Brasil em Londres, a arte de Maria Bonomi é finalmente apresentada ao público britânico, em mais uma exposição da Galeria 32, um consistente e respeitável projeto de divulgação da produção artística brasileira.
Maria – como afetuosamente é chamada por todos seus amigos – é hoje um dos nomes mais marcantes do cenário cultural de nosso país. Com efeito, poucos artistas plásticos alcançam atualmente no Brasil, uma ressonância midiática como ela, personagem de mini-série televisiva; testemunha e agente dos últimos 50 anos de nossa história cultural; responsável por um dos mais numerosos e destacados grupos de obras em espaços públicos da cidade de São Paulo; artista com o maior número de participação nas Bienais Internacionais de São Paulo; detentora de premiações nas áreas de artes visuais e cenografia.
Por outro lado, não existe personalidade mais avessa às formalidades, mais distante dos oficialismos, mais contrária à consagração, do que Maria Bonomi, uma eterna adolescente que, com energia e criatividade inesgotáveis, se reinventa a cada momento, produzindo uma obra em constante migração, com uma cartografia que se estende da vivência de metrópoles como São Paulo e Nova Iorque à experiências com a cultura chinesa e com a natureza amazônica. Uma obra pulsante de vitalidade e desejo, que se inscreve no âmbito da melhor tradição da arte brasileira, especialmente de gravura como expressão maior de um compromisso com o social e com a experimentação como visão ética do mundo.
A complexidade da obra de Maria Bonomi impede qualquer raciocínio linear ou reflexão unidirecional, como bem explicita o conjunto de trabalhos apresentados nesta exposição da Galeria 32. Eles englobam desde as xilogravuras coloridas em grande formato, que começou a produzir na década de 1970 – justapondo e deslocando matrizes em um procedimento que resulta em imagens de delicados cromatismos e forte impacto visual, como Tropicália, Sex Appeal e Sappho – até produções mais recentes, como a complexa Tetraz, xilogravura criada em 2005 em papel artesanal nepalês ou a delicada litografia La Niéce, ambas exemplos de um mesmo pensamento que se espraia por diferentes suportes. Transformed – xilogravura colorida sobre papel japonês, com dois metros de altura – foi criada por Maria Bonomi especialmente para esta exposição em Londres. É mais um exemplo de seu domínio dos grandes formatos gravados, que migram do plano para a verticalidade das paredes, em construções que articulam a simplicidade de formas com a monumentalidade da imagem. Integram também a mostra alguns Epigramas, objetos em cobre, alumínio ou latão, cuja produção se inicia nos anos 1980 e se estende até o presente, nos quais o barro, no momento anterior à fundição, recebe incisões trazidas do universo da gravura em madeira; bem como peças da série Love Layers, trabalhos escultóricos em metal concebidos em 2007, de forte conotação sexual e delicado equilíbrio, que compõem uma trama de lembranças individuais no espaço público. Completa ainda a exposição um vídeo de autoria do destacado videoartista brasileiro Walter Silveira, que evoca os múltiplos trabalhos de Maria Bonomi em espaços públicos da cidade de São Paulo.
Em 2008, a Pinacoteca do Estado de São Paulo teve o privilégio de homenagear esta grande artista com a exposição Maria Bonomi - Gravura peregrina, um extenso panorama de suas cinco décadas de atuação e dedicação às artes. A curadora da exposição, a renomada historiadora de arte brasileira Ana Maria Belluzzo, aponta que “Maria toca as coisas, elas mesmas, fazendo-as portadoras de uma significação traçada em torno da experiência vivida por ela mesma. A ação é portadora de sentido, não o mundo.” É assim com grande orgulho e imensa expectativa que vemos agora suas construções de sentidos atravessarem o oceano para prosseguir em suas jornadas de encantamento e sedução.
Marcelo Mattos Araújo
Diretor
Pinacoteca do Estado de São Paulo
2008
Homenagear Maria Bonomi pode parecer, em um primeiro momento, redundante ou mesmo contraditório. Com efeito, poucos artistas plásticos alcançam hoje, no Brasil, uma ressonância midiática como ela, personagem de mini-série televisiva; testemunha e agente dos últimos 50 anos da história cultural de nosso país; responsável por um dos mais numerosos e destacados grupos de obras em espaços públicos da capital paulista; artista com o maior número de participação em Bienais de São Paulo; detentora de premiações nacionais e estrangeiras, nas áreas de artes visuais e cenografia.
Por outro lado, não existe personalidade mais avessa às formalidades, mais distante dos oficialismos, mais contrária à consagração, do que Maria Bonomi, uma eterna adolescente que, com energia e criatividade inesgotáveis, se reinventa a cada momento, produzindo uma obra em constante migração, com uma cartografia que se estende da vivência de metrópoles como São Paulo e Nova York a experiências com a cultura chinesa e com a natureza amazônica, e cujo único compromisso é com a experimentação como visão ética do mundo.
Mas, como ao museu cabe a tarefa de construção da memória artística, a exposição Maria Bonotni. Gravura Peregrina é sim homenagem a uma obra pulsante de vitalidade e desejo, e que tem por objetivo inscrever esta obra na sua devida e merecida historicidade, no âmbito da melhor tradição da arte brasileira.
Para esta honrosa e árdua tarefa - posto que a complexidade da obra de Maria Bonomi impede qualquer raciocínio linear ou reflexão unidirecional - contamos com a colaboração imprescindível de Ana Maria de Moraes Belluzzo, Haran Cohen e Walter Silveira, na curadoria e na expografia da mostra, e no desenvolvimento de videos-instalações, respectivamente. Sem a competência e a dedicação de todos eles, esta empreitada não teria logrado qualquer êxito. A exposição contou também, em sua produção, com a contribuição preciosa de Maria Helena Peres Oliveira. Aos quatro, nossas maiores e calorosos agradecimentos.
À própria Maria, por fim, não podemos deixar de registrar nosso reconhecimento e nossa gratidão por esta oportunidade de colaborarmos na preservação de uma obra que nos coloca, a cada instante, diante do fascinante percurso da natureza humana.
Marcelo Mattos Araujo
Diretor Técnico
Pinacoteca do Estado de São Paulo
2008
Maria Bonomi. Gravura Peregrina
Toda exposição é construção em vários níveis.
É campo aberto a observação do público, convidado a pensar a partir de obras.
A obra desta artista laboriosa que é Maria Bonomi, ativa há mais de cinqüenta anos, não cabe em um roteiro linear e não corresponde a uma narrativa simples. Em primeiro lugar, porque a lógica da produção artística não pode ser confundida com o fluxo funcional do visitante pelo espaço expositivo. Tampouco se restringe à ordem cronológica e biográfica em que a artista se dedica aos trabalhos.
Obras artísticas resultam do adensamento da experiência. E seu tempo de elaboração compreende transformações, superposições, retomadas sob novas perspectivas, recuos e avanços. Só o museu transformado em laboratório pode dar a ver a liberdade com que Maria Bonomi joga e maneja sua obra, vida afora e vida adentro.
Para Maria é sempre a vez de jogar. Jogos simbólicos, em que paisagens construídas pelo olhar se encontram com lugares interiores. Jogos de sentido operados no momento de recortar a forma, no momento de sua impressão. E a vez de mover, de mexer, de mudar de posição, tirar do lugar, transpor a técnica de gravura para outros materiais e suportes. Brincar e sabotar regras do jogo.
Do mesmo modo que Maria joga com as matrizes da gravura, joga com as palavras. Os nomes dados aos trabalhos não prescrevem as obras, conversam com elas.
Maria Bonomi realiza importantes mudanças de orientação no regime discursivo da gravura, e esta exposição procura dar a ver essas estratégias. A gravura vista na horizontal. O crescimento da estampa gravada e sua ida para a vertical. A obra lançada no contínuo com o real. O mundo do simulacro. O mundo da reprodução. A obra continuamente em obra.
Ana Maria de Moraes Belluzzo, 2008
Curadora
Maria Bonomi: Gravura Peregrina
2008
A Xilo, O Isso, Da Xilo, O Aquilo
Na experiência de Maria Bonomi, o conteúdo central da gravura deriva, sobretudo, do momento introspectivo no qual explora a matéria. Abstraída do mundo exterior, na vivência de si, no ato de fazer.
Não parte de um desenho a ser reproduzido e sim da idéia a ser explorada. Com um esboço em mente e uma ferramenta na mão, enfrenta o material. Sua grande aventura é abrir branco na madeira, ação de tirar e não de pôr o risco sobre a superfície.
Abrir a madeira, cortar, marcar, sulcar... Chega a doer... Muitas vezes o próprio gesto já carrega o conteúdo expressivo, energia da incisão, movimento da mão. Mais além das figuras assinaladas, ela torna presente o processo, a ação de gravar.
A gravação em madeira tem implicações precisas no percurso artístico da Bonomi. Trabalho no escuro, pede franqueza no gesto. Subentende dupla visada de quem olha aqui e vê lá adiante: fazer isso, pensando naquilo que virá a ser imagem impressa.
A gravura tradicional lhe abre o caminho do transporte de figuras e da exploração de imagens transitivas.
Maria Bonomi promove importantes mudanças de orientação no regime espacial e discursivo da obra gravada. O pequeno trabalho de grafia manual, tradicionalmente exposto na horizontalidade da mesa dá lugar à estampa ampliada, levada a posição vertical da parede. Não se atem ao domínio do registro à mão. Inventa instrumentos, articula mecanismos de impacto.
A dimensão da matriz cresce ao mesmo tempo em que Maria passa a atuar no espaço arquitetônico e urbano.
A matriz – nome que alude à mãe, lugar onde algo é gerado, criado – ganha prevalência no processo, a ponto de vir a se tornar, ela mesma, protagonista. Maria dedica-se à matriz esculpida, à matriz articulada, ao preparo da fôrma de madeira para modular o concreto e construir superfícies ritmadas.
A sensibilidade de Maria será profundamente marcada pela linguagem da xilogravura, que atua sob outros modos de imprimir e formar imagens. Além de tirar riscos da madeira para levar ao papel, manipula a pedra litográfica, domina o metal, experimenta o processo serigráfico. Inventa veículos para a transferência de figuras, aplicando-se ao transporte interminável de sinais e a sua sobreposição. É capaz de tirar proveito da forma de corpos naturais, de coisas prontas e de objetos achados ao acaso, que aparecem pressionados sobre matéria moldável.
Deixa ver formas invertidas, mostra o avesso dos corpos, o cavo, o oco. Do outro lado da gravadora existe a escultora, que parte do entalhe da madeira e se aplica na estampagem do metal em baixo relevo. Sem visar o volume, ela atua na superfície entre cheios e vazios.
Maria Bonomi tira sentido da ação. Sua obra pede especial atenção aos procedimentos operativos entre a matriz e a estampa, entre a forma e a contraforma.
Ana Maria de Moraes Belluzzo
Curadora
Maria Bonomi: Gravura Peregrina
2008
Geração do Pós-Guerra
Maria chega criança ao Brasil no pós-guerra, procedente da Itália. Nos anos 50, quando a gravura se torna campo de experiência, ela apreende a usar os instrumentos de gravação com Lívio Abramo. O notável ensinamento de Livio foi o uso econômico de meios na xilogravura, de modo a expressar a sinceridade do registro proporcionado por cada um dos cinco instrumentos básicos. A saber: a linha pelo buril, a secção pela faca, a superfície tirada pelo formão, os sinais do buril em U e do buril em V. Treinada na disciplina instrumental, a gravura de Maria revela, em 56, ordem e o rigor geométrico tratados na extensão do papel, como vinha da prática cubista.
Em 57, estando em Nova York, depara-se com o vigor do expressionismo abstrato já em plena forma, que se manifestava, além da tela de grande formato, na gravura norteamericana. A orientação do mestre gravador Seong Moy, no Pratt Institutte, a gravura de Adja Yunkers podem resumir o estreito contato com novos valores artísticos, naquele ano.
O expressionismo abstrato viria lhe possibilitar gestos mais livres, menos controlados, autorizar a linguagem do inconsciente. Em gravuras realizadas a partir da cidade de Nova York, nota-se uma nova luz, com efeito de ofuscar e não de desvendar claramente. Surge a paisagem-labirintica e se observa, no nome de um gravado de 57, o uso da palavra “emaranhado”. Quem além de Pollock poderia tê-la difundido? O novo tecido imaginado pela artista intrinca fatos e objetos, significações e ambigüidades. E certos procedimentos da gravura de Adolph Gottlieb passariam a despertar sua atenção.
Ana Maria de Moraes Belluzzo
Curadora
Maria Bonomi: Gravura Peregrina
2008
Arquitetura Moderna e Espaço Urbano
A aliança entre Bonomi e os arquitetos modernos é propiciada pelo uso do concreto armado e o gosto crescente da estrutura aparente. É como se as linhas do madeiramento da construção já sugerissem fôrmas de concreto modelado, como se o partido de sulcos e incisões em baixo relevo tivesse sido naturalmente adotado por Maria. Ao longo das experiências arquitetônicas, varias soluções nascem diretamente na obra e não na prancheta. Busca soluções estruturais para paredes. Interfere na forma e na superfície dos edifícios, produz acidentes, incisões e sulcos que incidem sobre extensões contínuas, animando, ritmando ou rompendo planos. Sua contribuição ultrapassa muito o tradicional painel ilustrativo que era anteriormente aposto sobre a arquitetura.
A imagem construída na fachada do edifício pressupõe o transeunte ou observador em movimento e pode ser avistada por todos. A obra ganha o espaço público e se multiplica pelo número de passantes – numa correlação que artista gosta de estabelecer com a tiragem da gravura.
As obras sulcadas no concreto por Bonomi decorrem de complexo envolvimento espacial, no qual explora posições do observador e brinca com orientações do olhar. A visão aérea dos arrozais de Bengüet, nas Filipinas, aparecerá inscrita nos anteparos do balcão que rodeia o grande vazio do saguão do Hotel Macksoud (1979), em São Paulo.
No limite, desmancha a lógica regular e ortogonal das formas modernas. A artista rompe o alinhamento de planos e a continuidade do muro que envolve o jardim da residência de Tufy Mamede Assy (1982) em São Paulo, para obter o invólucro orgânico de uma parede despetalada.
Ana Maria de Moraes Belluzzo
Curadora
Maria Bonomi: Gravura Peregrina
2008
Jogos Espaciais
As imagens vêm de longe. Arrancadas do universo, passam a ganhar significação ao existir em torno da artista.
No manejo da gravação, Maria produz imagens dotadas de características ativas. Se o homem faz um pouso na lua, nos anos 60, porque não imaginar o acoplamento da astronave no espaço sideral por meio do contato sensível entre matrizes, que pousam sobre o papel ?
Cada vez mais Maria irá diretamente às coisas, sem uma instância intermediária, como se poderia perceber anteriormente em obras sustentadas pela idéia de cidade ou pela idéia de ação política. Nota-se que deseja tocar as coisas, elas mesmas, fazendo-as portadoras de uma significação traçada em torno da experiência vivida pela própria artista.
A ação é portadora de sentido, não o mundo.
A grafia oriental ganha evidencia em seu trabalho após viagem feita à China, em 74, na qual confirma o interesse pela redução de meios de linguagem e pela escrita por ideogramas. Como se fossem palavras (1975) é obra gráfica elaborada no estilo dos haicais, num jogo de matrizes combinadas. As mesmas matrizes, ordenadas de modo diferente a cada tiragem, sem registro, possibilitam a estampa única.
Novas transformações decorrem de jogos espaciais, que tem por base a página-partitura da escrita oriental. A atualização das partituras de Maria dá-se pelo deslocamento e pela superposição de pequenas matrizes de contornos diversos, permitindo incontáveis tiragens. Assim, os signos-matrizes dançam sob a folha de papel e criam a versão Tropicália (1994).
Ana Maria de Moraes Belluzzo
Curadora
Maria Bonomi: Peregrine Printmaking
2008
Artifício e Simulacro
A imagem reproduzida e repetida tem o efeito de obscurecer a representação da realidade.
Sem estar restrita à finalidade de multiplicar imagens, a matriz irá se tornar, ela mesma, outra peça em série. As antigas matrizes em madeira aparecem moldadas em resina plástica, com certa dose de humor, fazendo nascer artifícios e simulacros.
As simulações de Maria Bonomi surgem pela inversão de termos, com o nome genérico Solombras - emprestado do vocabulário de Cecília Meirelles. As peças ganham novas prerrogativas, tomadas como suporte de luz e destinadas ao legítimo uso decorativo, no enunciado dos anos 70, quando se afirma a matéria plástica e o objeto industrial.
A xilogravura por incisão reaparece na obra de Maria na estampa da Pedra Robat (1974). Entretanto, pode-se observar que as inscrições feitas em madeira estão, neste caso, motivadas pela lapidação em pedra. A obra nasce da forte impressão deixada por uma pedra de jade vista em Bejin. A enorme pedra esculpida possuía um trabalho acumulado pela fatura de várias gerações de lapidadores.
Epigramas são breves poemas satíricos que aparecem sob a forma de pequenos objetos fundidos em cobre, alumínio e latão, desde 1984 . As peças metálicas denotam os léxicos trazidos do repertório da gravura em madeira, inscritos por meio dos gestos sulcados em moldes de barro, que antecedem à fundição do metal.
Em se tratando de um período marcado pela hibridização dos processos técnicos de reprodução artística, pelo desprendimento e mistura de recursos de linguagens, tempo de mescla de culturas, não surpreende que a visão da natureza possa exercer efeito reconstituinte sobre o artista.
SOB IMPACTO DA NATUREZA AMAZÔNICA
As experiências e anotações da viagem realizada em 73 são decantadas lentamente.
O teor dramático conferido às gravuras da Amazônia deve-se não só ao fascínio provocado pelo lugar inaccessível, pois a viagem acontece quando o poder central abre a polêmica estrada transamazônica, em plena selva, partindo ou chegando às margens do Xingu, dando inicio à colonização da gigantesca reserva verde.
Na série amazônica: a imensidão solene, do mundo sem medida.
A magnitude da paisagem tem a capacidade de provocar introspecção e o sentimento da natureza é aliado das vivências interiores. Na obra de Maria, nota-se a matéria orgânica compactada, formada sob ação de forças físicas. São formas emblemáticas do poder de corrosão da natureza. Produz também Cabis, os homens cabisbaixos da região da floresta.
Ana Maria de Moraes Belluzzo
Curadora
Maria Bonomi: Gravura Peregrina
2008
7 Horizontes
Na obra Sete Horizontes prevalece a exposição direta da matéria, acumulada e sub-articulada. Apenas substancias e estados anteriores à interferência humana, dispostos em continuidade com o real.
Tais recursos acumulados em sucessivas superfícies horizontais parecem estratos e recortes da paisagem. Subsolos empilhados, com significações que se desdobram entre aspectos ambientais, políticos e valores imediatamente sensíveis.
Os recursos do universo adquirem valor simbólico e são mobilizados no âmbito da experiência da artista que os reconhece como material de trabalho. Aos seus olhos: areias, pigmentos, e por isso mesmo, para serem apropriados em fragmentos e transparências, texturas e ritmos. E, porque não, entrevistos nas camas de seixos rolados usadas para chapa de impressão, nas oficinas de reprodução gráfica.
É Maria quem discorre sobre o significado simbólico de cada elemento.
Ana Maria de Moraes Belluzzo
Curadora
Maria Bonomi: Gravura Peregrina
2008
Maria Bonomi ou a gravura feito mulher
Já faz cerca de doze anos que conheço Maria Bonomi; são quase doze anos que acompanho a sua trajetória e, sobretudo, a sua paixão indefectível pela gravura, em especial pela gravura em relevo. Ambas possuem a incrível característica de manter a sua simplicidade a despeito de sua força, características essas já apresentadas pela artista desde sua origem.
Maria Bonomi é uma mulher generosa não apenas em seu dia-a-dia, mas também em sua arte. Arte esta que ela conduz com entusiasmo e júbilo, explorando todos os registros da xilografia (assim como da litografia) em uma experimentação renovada constantemente. Sempre expandindo as possibilidades oferecidas por este ramo da criação, ela oscila permanentemente entre impressões delicadamente orquestradas por gamas cromáticas (suas matrizes sendo reimpressas em diversas direções e cores em uma mesma tábua) e uma proposta escultural dada às suas matrizes que ela expõe em espaços públicos em tantas criações monumentais.
É fundamental lembrar que esta vontade de expandir os limites habituais do campo da impressão, expressa por Maria Bonomi, deve-se antes de tudo ao seu anseio de criar ligações junto à sociedade que a envolve e comunicar com os personagens que a compõe. Para isto, como via de expressão compartilhada, Maria Bonomi lançou um desafio: propor aos passageiros que freqüentavam o metro de São Paulo que se tornassem criadores nesta matriz de concreto com 73 metros de comprimento, integrando o uso de objetos pessoais fornecidos à artista pelos usuários da estação da Luz.
A abordagem plástica de Maria Bonomi é composta de múltiplas facetas: através de um contato permanente com a matéria que ela ataca e tritura em um gestual fundamentalmente orgânico e sensorial, a artista faz surgir de suas matrizes ritmos cujas vibrações profundas e sensuais ressoam de uma exultação gráfica; esta abordagem lírica é acrescida de uma dimensão cívica e humanitária que encontra seu total florescimento em diversas criações de arte pública.
Catherine de Braekeleer, Maio de 2008
Diretora do Centro de Gravura e de Imagem impressa
2005
MARIA BONOMI
[...]
Ela retirou a gravura de seu espaço de gabinete.
Deu-lhe uma presença compível e integrada à escala da arquitetura moderna e contemporânea. Uma contrapartida ao cartaz de rua.
Suas criações constituem grandes impressões de formas geométricas em tensão, justapostas como trilhos, como condutores de energia e pulsões, ou ainda como mecanismos vibrando ou em movimento. Trata-se de uma obra onde se articulam inteligência e sensibilidade. Concilia a rudeza e a comunicação direta de grandes blocos de madeira cortados e entintados com a impressão delicadas de elaboradas combinações de cores sobre papel arroz – um suporte frágil, feminino e que evoca a tradição gráfica oriental. As gravuras de Maria Bonomi representam um momento de afirmação radical desse meio na contemporaneidade, um romper de fronteiras, pois trazem consigo Oriente e Ocidente, masculino e feminino, equilíbrio e desequilíbrio.
Ivo Mesquita, 2005.
PINACOTECA: 100 Anos: Destaques do Acervo.
São Paulo, Prêmio, 2005.
2005
Não dá mais para pensar em fazer uma obra na calma do teu quarto e dar para colecionador, por exemplo, que vai ficar olhando para ela. De repente, eu me aproximei muito de certas pessoas que procuravam o sonho, o convívio. Eu não acredito que o desenvolvimento da arte se dê de outra maneira que não por meio da arte pública. Eu acho que é o único caminho. Arte pública, arte coletiva. É lógico que você não pode pegar uma obra no ateliê, colocar no meio da praça e dizer que é arte pública. Não é, porque não pensei aquele local.
Não podemos mais ficar olhando o nosso umbigo, principalmente no Brasil, onde nós convivemos com a tragédia. Não vamos fingir que somos uma platéia elitizada, preparada, que está fazendo suas aquarelas, e vivendo suas memórias gloriosas da semana de 22. Não dá.
Eu dividi aquele espaço em três níveis. E daí entrei na memória da estação da Luz e todos os objetos perdidos durante cem anos. Tive acesso aos arquivos e os representei dentro do painel. Milhares de pessoas trabalharam comigo, gravaram esses objetos. Tem dentadura, sapo, raiz, cadeira de rodas, véu de noiva, rolou tudo. É um mundo. E nós fomos recuperando isso e simbolizando. O próximo passo desse trabalho que norteou o Epopeia Paulista acontecerá numa casa, na frente da escola de música Tom Jobim, que era um grande prostíbulo de três andares e que vai se transformar num ateliê, abrigando dez artistas por ano, cinco do interior e cinco de São Paulo, que vão trabalhar visualmente o entorno do local. É importante que tenha essa convivência lá. É importante que as pessoas se sintam atraídas por alguma coisa que não está em todo lugar. O insólito.
A arte hoje em dia tem que ser política. E é uma política de arte. E nós não podemos chegar tarde. O mundo inteiro está fazendo isso. Percebeu a dívida. Não podemos excluir pessoas de sua própria sensibilidade, ou negar meios a elas de se encontrarem num outro plano. Mesmo que elas optem por outras coisas, elas devem ter a chance. É como você ter acesso à saúde, à higiene, à alfabetização.
Eu sei de eventos que custam mais do que uma biblioteca, ou mais do que uma obra de arte pública, que são coisas que realmente transformam. Essa idéia de evento consome muita grana, e isso num país pobre onde é preciso que sejam feitas coisas que não conseguimos fazer. Na minha opinião, a gente teria que ter cada vez menos eventos e cada vez mais fatos culturais. As verbas deveriam ser dirigidas para coisas que permanecem. Esforços para que as coisas acontecessem física e permanentemente. Sair do cultural-efêmero para o cultural-substância? Uma situação que até pode incluir o efêmero, mas não somente ele. Eu tenho muito medo da cultura efêmera, que é um pouco a tendência de Brasília hoje. Vamos fazer os grandes festivais. E daí? E depois? Por que não, então, mais espetáculos de longas temporada e mais salas de espetáculos? Por que não uma verba para bibliotecas, orquestras e longas temporadas de concertos populares? Onde é que se pode falar disso? ...Na internet? Onde é que eu vou ser ouvida? Essas coisas são contradições muito grandes que são duras de digerir. Há um Brasil de costas para o Brasil. E é o Brasil cultural. É algo que sentimos na carne. Nós individualmente vamos além do que se poderia ir se as entidades estivessem participando.
Maria Bonomi, 2004.
2004
Artista delirante – Delirante artista
Diferem muito, porém estão identificados ao mesmo gozo,
pelo prazer de desenhar, pelo prazer de lidar com cores pastosas ou líquidas
que escorrem, pela alegria de interferir na matéria, criando sulcos, levantando
farpas, nivelando e polindo superfícies, definindo formas ou invadindo o branco
da tela virgem para escrever ou fazer linhas, retas, curvas ou pelo puro prazer
infinito da pincelada, da lentidão na mistura das tintas em pasta, pela
descoberta da reprodução, pela visão do nu ao ser transportado para o plano em
outra superfície, para acumular num quadro objetos possíveis, achados, ou
imagens. Prazer de ampliar com as mãos, com os olhos, para algum tipo de
transformação, ou ignorar o tempo do fazer.
A respiração é a mesma. Mas a gênese do produto que
surgirá difere amplamente. O processo ético e inspiratório também varia, assim
como o desejo referente ao que pretendem alcançar. Mas a linha ainda é tênue.
A arte é expressão de significados emocionais dentro de
cânones organizados para se desenvolver num certo veículo artístico. Sabemos
que um artista delirante enfatizará mais a emoção e o outro enfatizará mais a
idéia... Quanto da emoção (não existe uma sem a outra), quanto do pensamento
nos dois artistas acompanham-se de uma reação física visceral? Impossível
elaborar qualquer teoria a respeito dessa diferença, a não ser pela gênese que
impulsiona o artista, caso pretenda um significado transcendental para sua
obra. Pretende vesti-la de insubstituíveis funções transformadoras em relação
ao entorno? Necessita e pretende revelar alguma coisa de qualquer maneira? A
arte é uma forma de conhecimento compatível com o grau de informação, de
aprendizagem, de estudos e, conforme seu entendimento intelectual, ele se
comunicará tanto através da idéia, como do sentimento, da emoção, armazenando
símbolos e comunicando suas experiências humanas, poéticas e subjetivas como
algo definitivo e transformador. O artista delirante sempre fará seu trabalho
pelo viático do delírio, empregará várias premissas e suposições. Estabelecerá
sempre um ponto de vista e visará determinados objetivos. O delírio para ele é
um método. O delírio para ele é uma estrutura que sistematiza ordenadamente.
Thomas Ess, esse controvertido crítico, nos dá uma
definição brilhante do que pretende a arte, do que pretende o artista
profissional, ou seja, poder fazer qualquer coisa, significar qualquer coisa,
simular qualquer coisa, contanto que esta qualquer coisa corresponda e seja
controlada pela experiência mais intensa do artista. A arte coloca os seus
padrões acima daqueles da comodidade da sociedade e da história. Esta
intencionalidade do artista delirante, que trabalha o delírio como seu método,
deixa muito claro que há um compromisso com a realidade, mesmo que ele pratique
um ato de pura imaginação. As formas artísticas dos artistas delirantes se
baseiam em idéias, em sentimentos, em acontecimentos de determinados períodos
culturais que emergem, vivem, lutam para sobreviver e cumprir trajetórias, enveredando
em direções existenciais, propondo significados que são examinados e
desenvolvem-se.
Nosso processo:
• conhecimento latente presente e preservado.
• infiltrações da memória e de experiências técnicas
anteriores. Situações similares através de elaboração solitária. Geralmente
entre sonos...
• associações livres, acompanhando experiências pessoais
íntimas ou recorrentes, afetos, paixões, dores e descobertas.
• associações em zigzag; o acaso.
• deixar tudo em aberto.
• mediúnico.
• automático.
• mecanismos de abandono = reação.
• tempo desacelerado.
• existência formatada na obra (como sedução).
• sem limites: interferir no real. No entorno (Arte
Pública).
• transborde, inspiração Apolônica (Platão).
• reconhecer a ação coletiva para transformar e modificar.
• tudo é incorporado: de qualquer maneira
• a morte: total. A obra está feita. Orgasmo: pequena
morte.
Dubuffet polemiza quando diz, em 1967, que a criação da
arte ou aquilo que ela parece é sempre, em todos os casos, algo patológico.
Dentro da desesperada busca do artista pela ação transformadora, ele investe no
limite do método para obter mais abrangência, e desemboca na perversão, num
discurso altamente turvo e polêmico. É o caso do naturalismo exacerbado do
plastinador Gunther Von Haggens, de certas performances de Vito Acconci e de
Marina Abramovic, do canadense Richard Gibson onde, com esperma, urina,
atividades masturbatórias e exibicionistas, detém-se numa exasperada busca
narcísica, na qual a perversão torna-se elemento dominante, o estético passa a
ser secundário, eventualmente ausente. Não conseguimos mais detectar aquela
função transformadora inicial. Não é apenas uma ruptura que leva ao caos mas,
sobretudo, quer garantir que o caminho mais curto para o sucesso reside na
provocação emocional, visual, criando obras totalmente inusitadas e absurdas
para chocar o outro e o público. Quando a obra de arte se constitui somente em
espetáculo é sinal que o delírio escapou das mãos do artista. Deixou de ser
método, virou objetivo. A obra morte perdeu-se. Implanta-se a estereotipia,
manifestação do desequilíbrio, rompe-se a elaboração de idéias =
esquizofrenias.
A obra do delirante artista não busca o diálogo, não se
propõe a nenhum tipo de missão, nem pretende um resultado. Ela é apenas uma
manifestação do sujeito para se expor, para criar laços sociais, para tentar,
às vezes, comunicação. É um desnudamento centralizado nas representações
clássicas do self. É muito o corpo, o olhar, a figura humana, a boca, o globo
ocular, órbitas exageradas, sexos anulados ou repetitivos. Há uma certa
predileção por representar o ser que a pessoa é, ou se torna, ou se tornou,
através do processo patológico. Mas, de maneira alguma, nos cabe detectar a
doença, o desequilíbrio - isso cabe aos médicos -, através da mensagem visual.
Na pintura e outras manifestações plásticas, apenas conseguimos detectar que a
obra não se sustenta plasticamente. Não corresponde aos códigos. Ela não existe
plasticamente com plenitude, apesar de ter um estilo, às vezes estilos muito
fortes, pertinentes, completos. Exibem características que não alcançam a razão
da linguagem escolhida, têm claramente origem em outro tipo de fonte, ou seja,
o desejo do delirante artista não é o mesmo do artista delirante, nem a gênese
de sua manifestação, nem sua preocupação pré-estabelecida. O delirante artista
não faz afirmações. Suas obras são a antítese do estabelecido. São mensagens
inalteráveis e sublimes, não redutíveis pela lógica e pelo consciente. Estão
livres da lógica. Ele não exerce escolha, nem responsabilidade. Geralmente, as
obras são testemunho do próprio viver, das obsessões, de traumas, buscas para
espantar visões, exteriorizá-las. Libertação de um repertório interior
alucinatório, a ser transferido urgentemente para fora. A ser comunicado, sim,
mas sem finalidades objetivas. Por isso genuíno, expressão autêntica do tumulto
individual, de pulsões e de angústias. Liberatório. Não deixa de alcançar o
belo e o harmonioso: mas isto não tem importância para o delirante artista.
Porém, toca o essencial: o signo.
No delirante há uma procura desesperada para trabalhar a
matéria, para se expressar e se expressar como finalidade em si, urgentemente,
para fora, transferindo-se para fora. Preenchimento de vazios através de uma
narrativa alucinatória e não a perseguição de uma proposta. A anterioridade não
prepara o surgimento, é apenas auto-escuta. Não acolhe, nem escolhe, vive. O
momento preocupante é quando se nota na obra destes artistas uma regressão da
imagem. Não da idéia que fazem da imagem, mas da própria imagem em si: uma cena
muito chocante foi quando no final dos anos 1960 visitei Nise da Silveira,
acompanhando Jean Lemarie, que era o editor dos cadernos Skira. Nos mostraram
muitas obras e uma das pessoas que entrou em contato conosco quis me mostrar
seus desenhos. Havia neles sempre a representação de uma casa, montanhas, a
linha do horizonte, havia sempre a casa com sua janela, sua porta, sua chaminé
e me foi dito que ele havia sido lobotomizado recentemente. Desapareceu lá
dentro e voltou com os desenhos mais recentes, feitos depois da lobotomia. Ele
continuou me mostrando, com muito entusiasmo, as casas que ele estava fazendo
agora, só que essas casas eram uma linha reta cortando a folha da esquerda para
a direita, era só uma linha na folha de papel branca, com pouquíssima
espessura.
A evolução de um delirante artista se dá quando ele monta
a história de seu universo silencioso. Essa vontade é a melhor qualidade da
obra.
BONOMI, Maria, 2004
Texto apresentado na I Ciranda de Arte e Psicanálise,
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de
Janeiro, em 28/8/2004.
2004
PELE DA CIDADE
Os corpos são cidades e as cidades, corpos.
Leitura possível que desse corpo passado para linhas de areia vermelha, sobre uma superfície de asfalto, com placas de barro que coletam marcas de história e do cotidiano da maneira mais fiel possível: placas de barro disseminadas no corpo onde estão gravadas marcas como se se tratasse da transação entre interior e exterior. Associadas à captação fotográfica e verbal formam esta partitura urbana que se descobre – no seu passar – por ruas, casas e bairros. Esse texto trata da memória, páreo não de grandes batalhas, mas de pequenas metamorfoses cotidianas: tampas de medidores de água, tampas de latas de refrigerante encaixadas no asfalto, mosaico de Nova Veneza, grades de esgotos. Segui o processo com que Maria Bonomi, brasileira, criou em formas e matérias o contato que tem com esta cidade que ama e que acolheu nas Bienais do Barro.
Trançados com múltiplos fios desse sentir, Maracaibo lhe deixou marcas que ela quis deixar impressas com materiais próximos a nós. Recorrendo a seus sentidos, juntamente com artistas de sua equipe de trabalho soube cheirar, tocar sentir a pele e as texturas desde o sensorial mais próximo: o tato.
O contato que o corpo tem com as metrópoles não se pode definir completamente com palavras nem por vias figurativas nem realistas – ela me confessou. Os fios múltiplos formam a rede sensível de linhas que vão se amoldando às tramas das figuras atuais ou originais. Figuras que devem ser vistas do mais alto de um plano (como em Nazca) com geometrias que relembram abstrações pré-hispânicas, se fundem em vias subterrâneas da matéria asfáltica cujo odor tinge o ambiente, como o da própria cidade, fazendo-nos ver tudo isso mais além do que contém nossa urbana contemporaneidade.
Victor Fuenmayor, 2004.
FUENMAYOR, Victor. “Piel de la Ciudad”.
In: V Edición Barro de América. Maracaibo,
Centro de Arte de Maracaibo Lía Bermudez, dic. 2004.
2004
MARIA BONOMI
[...]
A rapidez de execução da litografia, no entanto, não a atrai; na xilo, transfere os gestos nervosos da action painting, com resultados inéditos. A mancha preta da matriz no papel e as manchas brancas das incisões na matriz, que às vezes têm a soltura de um dripping, criam estruturas complexas, mas controladas. A fase seguinte começa em 1963, com as Situações e culmina nas exposições de 1967, em Paris e Munique; ripas lisas utilizadas como matrizes, por justaposição, cores brilhantes, a gravura conquistando a parede, competindo com o impacto visual da pintura. A nova escala, definitivamente assumida, é devoradora do cartaz; está implícita a intenção de uma arte para muitos. Mas isso não se dá apenas por exigência ideológica, e sim por uma evolução coerente, ao longo de uma década, que representa um percurso incomum na arte recente do país.
Os painéis em concreto nascem disso: Maria Bonomi encontra neles um ponto de fusão entre sua “gravura pública” e a arquitetura brutalista – fusão já intuída por Artigas, que colocou uma gravura de Bonomi na rampa do edifício da FAU-USP.
O concreto aparente tornando-se suporte de um novo tipo de estampa, acentua seu caráter escultórico. A gravura chega ao limite de seu desdobramento no espaço. É um capítulo importante da relação entre arte e urbanismo em São Paulo.
Lorenzo Mammi, 2004.
MAMMI, Lorenzo. Maria Bonomi.
São Paulo, Centro Universitário Maria Antônia,
29 abr./13 jun. 2004.
2003
A GRAVURA COMO AÇÃO POLÍTICA
[...]
Basta colocar os olhos nas obras de Maria Bonomi expostas na mostra Tetraz para ter certeza de que na gravura brasilis se encontram os caminhos que nos levam à identidade esquecida.
São quatro trabalhos em médias proporções, ao lado de painéis de fotos, e ajuntamento de terra batida, simbolizando desde o desregramento do progresso até os descuidos do homem diante da mãe natureza. Em um dos momentos inclusive o espectador é instado a espetar uma faca em um dos montes. Do assassinato à ressurreição, não importa: a ligação do mais racional dos seres com seu habitat deve ser repensada de imediato. [...]
A sinuosidade das obras de Maria Bonomi estabelece de imediato um diálogo com várias escolas da gravura brasileira ao longo das décadas. Por isso permite uma rememoração de sua ascendência e dos espaços de identidades relacionados em seus sulcos e silêncios.
[...]
Os trabalhos de Maria Bonomi, sejam estes de Tetraz, sejam os que compõem sua bela e extensa obra, trazem sempre o emblema de sua ascendência e seu compromisso com os volumes, o ritmo e, por que não, a narrativa – algo índice da melhor gravura brasileira.
A maneira como ela centra os objetos ou sujeitos em sua composição; o entorno ao qual recorre como suporte; os cortes abruptos como seqüência de planos; mais os silêncios ou densidades postos na narrativa – são componentes que geram uma obra ao mesmo tempo contemporânea e recheada de diálogos com a tradição.
As obras de Tetraz, no caso, são ricas em símiles e na construção de planos cinéticos. Contém referências ao universo camponês, e sua imagética de facas e lâminas, enquanto joga com os reflexos e ritmos sugeridos pelo tema.
Bonomi, como excelente gravadora, não abandona o que move o suporte e se mostra sofisticadamente engajada em sua indignação. Um estado de espírito há muito perdido pela pintur brasileira – hoje quase sempre caminhando por uma real assepsia do mundo.
Miguel de Almeida, 2003
ALMEIDA, Miguel de. “A Gravura como Ação Política”.
Gazeta Mercantil, São Paulo, 15, 16, 17 ago. 2003.
2002
FRUSTRAÇÃO PARA LEONARDO DA VINCI E ÊXTASE PARA MARIA BONOMI
Guardada a devida distância de épocas tão diferentes quanto a arte renascentista e a arte contemporânea, alguns desafios tecnológicos, operacionais e artísticos permanecem os mesmos.
Leonardo Da Vinci, criador renascentista italiano, nascido em 1452, foi um dos maiores gênios de toda a história da humanidade. Aos 46 anos, protegido pelo duque de Sforza de Milão, julgou ser propícia a ocasião para execução da obra de um cavalo que seria o orgulho de toda uma dinastia e traria como desafio a escultura monumental feita por modelagem, ou seja, da argila sobreposta a uma armadura de ferro e transcrita através de um molde de gesso para o bronze.
O cavalo sempre foi um animal que trouxe, com simbologias agregadas, o auxílio ao homem no que se refere ao transporte, do próprio homem e de notícias, ao esporte, por ser dotado de força física e beleza ímpares em galopes de velocidade que serviram como referência até para motores de carros.
A história foi cruel com o nosso ilustre Da Vinci no momento em que o busto do cavalo foi destruído pelos franceses após a invasão de Milão no ano de 1499.
Depois deste fato, Leonardo realizou as suas mais afamadas obras tais como Adoração dos Magos, Última ceia e Mona Lisa. Entretanto, os relatos da época apontam que a expressão do artista desde então passou a ser sombria. Nem mesmo a acolhida da corte francesa, como parte de um dos mais recentes de seus protegidos, pôs fim a sua melancolia e, aos 67 anos, morreu nos braços do rei Francisco I.
Maria Bonomi, ao contrário, recomeça a sua vida artística aos 67 anos com um vigor físico de uma garota de 20 anos e com a maturidade intelectual e criadora da idade que possui. Hoje comemorando seus 55 anos de carreira artística, datados a partir de sua primeira premiação em 1947, a artista faz uma Arte Pública intrigante e que, na História da Arte Brasileira, poderia ser definida como o novo, o imprevisto e o desconhecido dentro deste segmento de trabalho que relaciona o objeto de arte com as artes gráficas e as expressões tridimensionais.
Maria Bonomi recebeu, há poucos meses o convite-desafio de uma das empresas brasileiras mais dinâmicas no segmento do tratamento de informações econômico-financeiras e cadastrais, para fazer uma transcrição do troféu "Ginete" (20,0 x 16,0 x 4,0 cm) concebido para premiação aos lideres do sistema financeiro no ano de 1994 e sob encomenda dessa mesma instituição que ora lhe faz o convite. A proposta é transformar o pequeno Ginete em uma obra colossal, cujas novas dimensões são quatro metros e quarenta centímetros de altura, três metros e cinqüenta centímetros de comprimento e, um metro e dez centímetros de largura. Na verdade, para uma escultura, estas medidas não seriam tão extravagantes, mas para a obra tal qual a artista criou, sim.
O Ginete traz cavalo e cavaleiro bem enquadrados sob uma figuração abstrata que compõe a identificação externa destes dois elementos em um galope selvagem. Sob este aspecto, a obra em questão é uma escultura, entretanto, a definição usual de pleno relevo é de uma obra tridimensional que pode ser observada de qualquer ponto de vista.
Maria Bonomi não concebeu o Ginete para ser visto de todos os lados, apenas frente e verso, já que a obra vista em suas laterais parece uma folha amassada ou um plástico torto e as formas perdem as definições, ora o volume aumenta chegando a medida máxima de 1,10m, ora diminui até a espessura de apenas 15cm. Uma discrepância que desafia qualquer imaginação, pois vê-se cavalo e cavaleiro de frente e de costas, que desaparecem como um raio, se olhados de lado. Eles são apenas uma desculpa pelo uso de suas formas e contornos exteriores que nesta criação são pequenas gravuras agrupadas.
A respeito das gravações sobre a argila, há a violência das ferramentas em um fluxo de energia fora dos padrões normais porque Maria Bonomi trabalha com uma força expressiva como se nos dissesse que cada minuto será o último e que é preciso aproveitar o tempo, a velocidade e a densidade das formas do cotidiano. Esta dinâmica que lhe é peculiar fez com que a obra em argila fosse gravada em um mês e meio, inclusive aos finais de semana, sem quase fazer paradas. Este fôlego todo preocupou Antonio de Nóbrega Filho que tratou de providenciar um andaime mais seguro e de amarrá-la à marquise, apesar de seus protestos. Maria Bonomi trabalhou tão intensamente que, ao cessar, estava coberta por hematomas e escoriações por todo o corpo.
As ferramentas que ela utiliza vão além do repertório tradicional da incisão escultórica e xilográfica (da gravura em madeira). Novos instrumentos de trabalho foram inventados com exclusividade para o Ginete, pois ela construiu, com a ajuda de ferramenteiros especializados, um verdadeiro "arsenal de guerra" constituído por peças de computador (mesmo procedimento ready-made da antiga gravura Heróika da década de 70), ferramentas de pedreiro com dentilhados inventados, madeiras roliças torneadas em ondas (que dão efeito próximo da xilogravura sobre papel com uma goiva em u) e o mais bizarro e intrigante foi o uso de bastões entalhados (em suas extremidades) com uma xilogravura para dar textura e escavar a argila. Como ela pôde se servir de uma matriz xilográfica para produzir uma nova gravura? Tal procedimento é revolucionário por ser uma meta-criação, ou seja, uma criação da criação. A partir deste momento, seria discrepante instituir a terminologia gravura da gravura?
É difícil descrever uma obra edificada por tantas ferramentas, instrumentos e objetos díspares utilizados em construções, desconstruções e reconstruções compositivas plásticas que formam uma rede digital e dão sentido e significado ao conjunto.
Que outro artista contemporâneo tem este know-how e atitudes semelhantes?
A História da Arte tem nesta artista parâmetros que deverão ser estudados com muita atenção.
A crença de que o trabalho de Arte pode ser muito prazeroso e lúdico foi desmistificada na execução da obra em questão, que deveria ser realizada em poucos meses e tumultuou/mobilizou mente e corpo de uma equipe composta por 31 pessoas, além da artista.
No projeto, o arquiteto Rodrigo Velasco realizou os cálculos e a estrutura da base da obra para que, no primeiro galpão, Otaviano Vila Nova Lima soldasse a estrutura de ferro para a sustentação da argila. A artista vislumbrou e solicitou a confecção de ferramentas que foram executadas e adaptadas por José Foltran e Jairo Battaglia. Deste último deve-se a animação e articulação dos que viriam a preparar a argila como Wilson dos Santos Ribeiro, José Nilton Pereira dos Santos Filho e o prestativo Manuel José de Oliveira que, uma vez encerrado o trabalho de Maria, preparou o gesso e as formas de gesso acompanhado por Marco Antonio Pedrassa e Leandro Ribeiro da Silva que finalizou a limpeza dos mesmos. Antonio de Nóbrega Filho foi o agente catalítico que soube interagir com a artista e acompanhar toda a passagem do "Ginete-argila" ao "Ginete-gesso" e "Ginete-alumínio".
O "Ginete-gesso" que é o molde transposto da argila para virar alumínio precisou ser transportado a uma fundição de grande porte e tradição localizada na cidade de Piracicaba no interior de São Paulo. O transporte, por ser muito delicado, demandou cerca de 20 viagens realizadas pelo cuidadoso Olímpio Fernandes.
Na fundição, o procedimento seguinte envolveu a siliconagem com 8mm de espessura dos 22 moldes de gesso feita camada por camada com as pinceladas pacientes de Luiz Eduardo dos Santos e Benedito Elias Martins. A fase posterior foi a prensagem do silicone em formas de areias (semelhantes às carapaças do filme Cocoon) com ar comprimido, modeladas por Pedro Cesar Vitti, Fabio Augusto Forti e Luiz Eduardo dos Santos, aptas para agüentar o calor do alumínio derretido. Na fundição, o batalhão de homens a correr com seus pesados baldes de "ouro branco" (o alumínio) em direção aos "cocoons" e o derramamento da lava prateada suscitou um filme de ficção científica onde apenas as roupas e expressões suadas e tensas dos trabalhadores nos remetiam de volta à realidade. São eles os corajosos "homens do fogo": Adalberto Luis Vicola, Alexandre Luiz dos Santos, Ezequiel da Silva Nascimento, Fabio Augusto Forti, Halul Thales Lucas, José Elias do Amaral, Luiz Eduardo dos Santos, Luiz Alberto dos Santos, Luiz Ronaldo Pinto, Pedro Cesar Vitti e Vanderlei A. Mariano Corrêa. Depois de destruídos os "cocoons”, de dentro deles nasceram cada pedaço do "Ginete-alumínio" soldado e estruturado internamente por Moisés Francisco e Paulo César F. Borges.
A esta altura, a peça de uma tonelada e meia pôde ser levantada por quinze homens, era a primeira vez que o Ginete ficava de pé. Todos receosos de que ele pudesse cair, foram soltando suas cordas aos poucos mas o receio foi logo substituído pelos olhares de satisfação ao verem cavalo e cavaleiro imponentes e equilibrados; somente a artista parecia tensa e inquieta.
Será que a obra a assombrou naquele instante pelo peso de sua monumentalidade ou foi o choque de ver a transposição do seu imaginário nas gravuras metálicas?
Por fim, como a solda em alumínio é muito delicada e sempre deixa algumas sequelas/imperfeições (apagamento das texturas), Maria Bonomi e Antonio de Nóbrega Filho supervisionaram a reconstituição dos reajustes de Nivacir Aparecido Paiva e Josué Pedreira Feitosa. Na última passagem, houve o polimento por Luiz Aparecido Rigo, Paulo César F. Borges, Reginaldo Aparecido Pedro e Anderson Aparecido C. de Oliveira; seguido da pátina, novo polimento manual e banho de proteção ao metal realizados por Ezequiel da Silva Nascimento, Adelson Lopes da Silva e Luiz Eduardo dos Santos.
O cavalo tem o efeito óptico do kinetos, o movimento real provocado não somente pela perspectiva de cada ângulo (tradição Renascentista) mas, pelas texturas e sulcos gravados que, apesar do agrupamento, brigam entre si por atirarem o olho do espectador em todas as direções. Neste "vai e vem" óptico mesmo parados diante da obra tem-se a labiríntica sensação de movimento.
Os princípios da tão explorada Arte Cinética durante o século XX não chegaram a este tipo de desdobramento, já que esteve mais preocupada em fazer com que as pinturas e obras gráficas imitassem o movimento por distorções obtidas pelo jogo de dimensões diferentes, das cores, da tradicional perspectiva e, na maioria das criações e o uso da geometrização. Outra vertente da Arte Cinética usou máquinas, motores e energia eólica para movimentar pinturas, gravuras, esculturas e objetos (móbiles), e, fez com que o público pudesse participar da obra ao manuseá-las.
Maria Bonomi é um meio diferente, ou seja, o agente da sua própria mídia que, neste caso, é a arte gráfica tridimensional kinética virtual se comunicando por flashs gravuras agrupadas em um suporte escultórico.
O cavalo galopa em um salto tão grande quanto o próprio salto que Maria Bonomi realiza com os rituais artísticos inaugurados por ela.
[...]
O "Ginete" carrega nele a alma dos brasileiros que se juntam as mãos e dão o melhor de si para que o país possa se desenvolver apesar das numerosas incertezas.
Marcela Matos Nhedo, 2002.
2001
A IMATERIALIDADE OU MATERIALIDADE DA GRAVURA
[...]
Nosso ponto de vista é que antes e além de qualquer boundaries existe um “pensamento gráfico” que organiza a “idéia” gráfica e que já contém os elementos que irão configurar a imagem seja ela bidimensional, eletrônica, plana, progressiva, subliminal, etc, etc.
Este pensamento gráfico “anterior” é totalmente flexível e abrangente e incorpora os mais variados meios, sejam eles tradicionais, ou contemporâneos. Imagens fixas, móveis ou voláteis, que terão sempre caráter gráfico. É o que temos constatado explicitamente no levantamento da evolução das obras apresentadas nas maiores Trienais e Bienais da área (Praga, Ljubljana, Cracóvia, Sapporo, Tokio, etc) quando claramente o conceito ou o título gravura se desdobra e adquire novos desígnios.
Talvez a indicação de poética gráfica como modo de definição dos procedimentos contemporâneos seja mais adequada para os dias de hoje. O que procuramos enfatizar é que na base geradora é a idéia que prevalece sobre os meios. Ela já é o projeto e o produto gráfico. A idéia é a matriz, e vice-versa.
Tornou-se palpável a tendência de forte divisão entre os caminhos de busca da Gravura Contemporânea e da Gravura Tradicional, mas podemos afirmar que é sobretudo por uma proposital resistência por desconhecimento ou insegurança preventiva, tanto dos praticantes como dos fruidores, do que por um real e verdadeiro antagonismo factual. Na realidade a tradição é recriada a cada momento posto que a tradição percorre a história sem ter fim, sendo um acúmulo de conhecimento e até de preceitos necessários que impregna todo o ato de fazer gravura, bem como a base de todo o discurso que apoia a linguagem da Gravura, em toda a essência de processos e sistemas expressivos. Nosso testemunho é verdadeiro como artista, mas muito delicado teoricamente porque se baseia nos últimos 40 anos que estivemos vivenciando esta perene mutação dos veículos da Gravura.
Permanece ela mesma apesar das infinitas aparências com que acontece.
É incrível verificar que nas escolas, desde os centros de gravura especializados em pesquisa ou nas universidades (onde existem estudos avançados) como por exemplo na Masashiro Art University em Tokio, Japão, o curso de gravura tem a duração de 4 anos e mais 2 até à pós graduação. O ensino do desenho dura apenas um ano e outras técnicas os demais anos.
Como seqüência paralela estudam possibilidades experimentais aplicadas à gravura como sejam fotografia e todas as tendências eletrônicas, cibernéticas e também tridimensionais virtuais ou não, como expansão legítima da obra gráfica. Nowadays possibilidades infinitas do campo gráfico são acessíveis já nos bancos escolares pela diversidade disponível dos multi meios.
A “obra” do futuro “que subverteu” permanentemente todos os meios de expressão gráfica está, esteve e estará sempre presente como uma opção prioritária infinita pela liberdade (obrigatória) da prática das artes gráficas. Aqui é importante ressaltar que a Gravura permanente se desenvolveu mas nunca comportou atuações frívolas ou superficiais por ser qualitativamente impossível praticá-la sem forte embasamento técnico de qualquer meio do qual se aproprie o artista. Nem se sustenta sem uma forte carga de inventividade que permeia e garante a criação da imagem que caracteriza.
Portanto, é a Gravura do passado, que resgatada sempre se renova como uma força em expansão.
A Gravura não se moveu em linha reta, mas em todas as direções plenamente à vontade na conquista do território multi-mídia, onde ela pode ser exercida com grande paixão, sem perda da sua legitimidade, continuando caracterizada por sua gestualidade e seus conteúdos refinadíssimos do ideário particular e pessoal. É claro que tudo se sustenta num imaginário inteligente, onde o conhecimento técnico coordena: exercício criativo e o significado dele resultante.
A Gravura aglutinou o aparecimento de novas mídias e a constante transformação do mundo que nos envolve e sobretudo tematizou a divulgação das grandes descobertas sejam elas científicas ou tecnológicas. Os gravadores se colocaram na posição de revisores e narradores autênticos das transformações conceituais. Na sua raiz. A infiltração de novos significados dentro e fora das Instituições, novas postura humanísticas, crises do homem e do artista, a presença da não arte e da arte em todo lugar (pelo que deixou de ser pintura, pelo que deixou de ser escultura), a grande integração da, a profunda necessidade humana de expressão, resultou na Gravura Contemporânea. A Gravura tem como destino articular impulsos em direção a uma transcendência. Os gravadores autênticos (basta um levantamento estatístico das Trienais dos últimos 9 anos) nos conduziram às conquistas das mais variadas e valiosas mensagens poéticas.
Dentro do tema “The Quest for Identity of Printed Image whithin its Boundaries” parece-me ser urgente interromper as críticas que se levantam contra as novas técnicas ou a essas novas tendências dizendo que não se trata mais de Gravura. Justamente concluímos aqui pelo exposto, que a imagem impressa que é Gravura transcende a sua própria materialidade, ela é antes de mais nada uma idéia, uma percepção, cosmogonia visual autônoma que pode existir liberta de formas condicionadas, datadas, extrapolando seus limites e a cada passo, se faz, se perfaz e se refaz em renovados corpos de mensagens poéticas por pura sintonia com o latejar contemporâneo.
Não por acaso mas intencionalmente aqui na cidade de Kafka usamos uma de suas parábolas para sedimentar nossa análise, nossa “pergunta”, nossa descrição do que seja a Gravura hoje. Ela é uma presença viva, mas um ser que tem dois adversários, o primeiro o acossa por trás na sua origem e o segundo bloqueia-o no caminho da frente no seu futuro, e esse ser luta contra ambos. Na verdade o que o oprime por trás é a mesma força que o está projetando para a frente e da mesma maneira a barreira da frente é aquela que lhe dá forças para lutar contra o que está atrás. A Gravura sempre se modificou prevalecendo sobre todos os seus adversários conceituais e/ou técnicos pela força de sua natureza antropofágica que aglutina e utiliza todos os meios de expressão disponíveis que lhe garantam sua natureza essencial. A Gravura essencial seria aquela cujo processo mental e manual osmóticos possuem capacidade de adaptação que lhe garantem a sobrevivência e a infinita reprodução, leia-se multiplicação, ou por “exemplares” ou por fruidores.
Acreditamos pois que exista um pensamento de Gravura e que este pensamento é que legítima qualquer processo que ela adote.
Assim, a Gravura é arte sempre em progresso e em processo realizada seja pela computação, seja pela projeção, seja pelas instalações e mixed-mídia não limitada por tecnologias, não limitada por materiais. Pode ser definida e desenvolvida para além de seus veículos como uma postura, uma idéia, uma busca, uma tendência que não é retida em circunstâncias expressivas mas que antecede a sua realização material.
Working in progress, ela é anterior enquanto impulso gerador de visualidade por uma expressividade permanente. A Gravura pode ser definida com um pensamento livre não através da sua materialidade, mas por sua memória residual.
Poderíamos também ampliar o que as escolas fazem, caso se proponham objetivamente o ideal de um novo “ensino da gravura” para estimular e desenvolver o pensamento gráfico e não apenas a operação gráfica. Desenvolver atitudes que já existem, visto que são elas que permanecem e atravessam os tempos. O ato de gravar que se perde na soma de receitas e de experiências que só materializam uma obra não são Gravura propriamente dita mas antes de mais nada uma idéia em trânsito palpável.
A Gravura existe como idéia e atravessa todos os tempos, ela não precisa da materialidade propriamente dita para existir, ela pode se realizar aplicada ou subjacente a qualquer linguagem. Esta atitude imaterial da Gravura se torna a sua característica em todos os tempos, em todas as gerações que praticaram formas de expressão de uma idéia gráfica. Sua realização se torna quase secundária. Assim foi decodificada pelo trabalho de inúmeros estudiosos e artistas que indagam claramente esta questão quando preveem o futuro da Gravura. Poderíamos levantar esta pergunta de qual será o futuro do pensamento da Gravura pois está garantido que a Gravura essencial já sustenta e alimenta 90% da arte contemporânea se considerarmos a Gravura processo e idéia como projeto, por sua natureza intrínseca, portanto projeto (que é sempre uma grafia) que promove variadas leituras, que rege e configura a obra no momento anterior, que pode até se imaginar como um desenho, mas não é exatamente um desenho.
O pensamento gráfico propõe versos e reversos, e nessas propostas é que ele pré existe, antecedendo à limitação de uma situação, na hora em que se coloca no computador ou numa matriz bidimensional ou no espaço tridimensional o desenho “da idéia” a proposta extermina-se como produto.
O desenho é um “momento” desta idéia, é um primeiro momento da fixação, um registro circunstancial cujo resultado é a própria Gravura.
O que dizer então da visualidade da Gravura nas páginas da Internet (de onde podemos reproduzir o todo ou partes) em projeções ou em relevos ou em instalações geradas pela proposição e aproveitamento da idéia gráfica. Inúmeros artistas tem percursos do pensamento de quem grava.
Virtualmente ou solidamente se propõem multiplicar imagens em leituras lineares ou em volumes rebatidos e reconstituídos.
Não faria sentido citar apenas alguns nomes porque seria uma limitação.
Por esta vertente a imagem gráfica se realiza pela infinidade de variantes ao revelar contemplações sempre a partir de uma emoção consubstanciada numa idéia gráfica.
Acredito que surgirão no futuro novos meios de realização e será sempre o pensamento Gravura que vai determinar sua qualidade.
O que queremos dizer é que anterior a uma materialidade, o pensamento gráfico existe, permanece e se expande. Uma tapeçaria conquistada por sua trama de milhares de pontos ou a impressão com gesso de marcas da areia de uma praia de ondas do mar fazem parte de um universo onde predomina o pensamento de Gravura, que não lida na origem com uma materialidade a priori mas sim a posteriori.
Existem aspectos universais da Gravura identificadas com uma expressão de achievement, of printmaking of thinking that is not material.
Poderíamos dizer que os conflitos entre o material e a idéia são a própria essência da obra. O percurso da realização é a obra, o print, como consequência. Isso pode parecer paradoxal e inquietante mas verdadeiro. Em todos os casos o significado de projetar, ou seja projetar significa transpor qualquer coisa do interior de nós para o exterior, então a nossa própria ação já é o segundo “movimento” visto que o primeiro está em nossa mente. A Gravura enquanto resultado se refere ao mundo visível percebido pela retina ou pelo tato, mas enquanto conceito enquanto idéia ela se conclui totalmente em nossa mente. Isto quer dizer que quando trabalhamos com meios eletrônicos ou outros “caçamos’ por assim dizer a matriz mental usando os mesmo resíduos da memória-imagem ou da memória-técnica que já transpomos para um terceiro suporte enquanto materialidade, materialidade esta somente para a retina que poderá nunca chegar a ser impressa ou veiculada a não ser através do fenômeno da percepção.
Assim, realizar uma Gravura é antes de mais nada ter uma idéia como idéia gráfica e possuir valores gráficos antecedendo à sua materialidade.
E quem sabe até possamos um dia prescindir dela: a materialidade.
Maria Bonomi, 2001.
BONOMI, Maria. A Imaterialidade ou Materialidade
da Gravura. Praga, set. 2001.
2000
SEMPRE GRAVURA
O gravador que como nós está processando tempo e espaço das suas idéias (obras) gráficas é privilegiado pela contemporaneidade. A natureza da sua linguagem sempre pertenceu ao hábito de demoradas pesquisas técnicas, de observações agudas e disciplinadas através das mídias “aparentadas” ou emergentes gerando respostas rápidas ao constante cruzamento de informações. Ele já não é um ser isolado que ilustra ou reproduz para uma maioria a informar, ele está adiantado antecipando comportamentos visuais pela própria disponibilidade ao inesperado. É fácil propor a ele novos convívios sem que seja preciso despojar-se do seu universo visceral anterior. [...] O gravador é o artista que nutre aquilo que quer dizer fundamentalmente com a maneira de dizê-lo.
[...] Para o gravador qualquer panorama conflitante ou multifacetado do momento contemporâneo (onde todo fenômeno diário é suscetível de se tornar ato artístico ou produto artístico apenas pela percepção) é apenas questão de escolha ou da vontade “de ser criador” na mídia que preferir. Quando a tecnologia (ou mesmo a “academia”) são dominadas, sua formação é sólida.
[...]
Ninguém melhor que o gravador para conviver com quanto Joseph Luis Beuys chamou de o “conceito ampliado de arte” em que uma obra é atomizada, em que o autor é atomizado também e é assim desmontado o território artístico em sua sacralidade desde o suporte que passa a ser infinito até à maneira de mostrar a obra, ou seja, até à reformulação museológica, à reformulação das galerias, das exposições etc. Tudo isso com uma vitalidade enorme e inaugurando utilidades que estão sendo totalmente recondicionadas pela gravura.
Altamente sadio e lúcido constatar que a gravura está vivendo com naturalidade situações opostas de maneira simultânea; desde o ex-libris até às instalações às vezes praticadas por um único artista esgotando todos os rebatimentos. Essa arte sem lugar tem lugar, um só artista para criar tudo quanto possa ser distinguido como arte, sua arte. Para manter nosso “fio-terra” (e alguns artistas assim fizeram) produzimos uma “bula”, uma imagem impressa, uma receita de como repetir isto num outro lugar para outro público, em outra situação e em outro momento, principalmente porque estamos vivenciando uma grande mistura de origens e de fontes artísticas. [...] Nós que sentimos de uma maneira cada vez mais livre e mais “contemporânea”, trabalhando para o aqui e o agora, esta obra de arte que nunca é repetível mesmo se seriada; essa é uma qualidade, pois nunca será igual, ela será semelhante e passa a existir o jogo mediático de transferências de estratégias que envolvem desde o discurso criativo até o consumo deste discurso.
[...]
Se quisesse mudar de meio de expressão, não poderia, nem cogitaria fazê-lo. Mesmo após 45 anos ininterruptos de prática da gravura me soa catastrófico pensar em outra comunicação. Jamais sobrevivi à saturação de rotinas limitadas, jamais sobrevivi à frustração do tecnicismo exaurido, dos caminhos monótonos e convergentes. A gravura é o processo criativo no qual a captação/realização/execução está em expansão contínua. Nunca pensei em renovar tendências, sigo apenas as infinitas e secretas possibilidades implícitas no seu âmago.
Verticalize meu amigo, tente prolongar mais o tempo do banho do ácido. Talvez ao furar o chão se possa extrair dum sulco diagonal subterrâneo texturas vibrantes e cíclicas num veio de carvão... . Esta é a gravura. Abrir os olhos domesticados para direcioná-los a referências sem limites de todo tipo de representação e indagação. Sempre gravura.
Maria Bonomi, 2000.
2000
CALEIDOSCÓPIO BRASILEIRO
Nada na gravura é supérfluo, nada na gravura é banal. Arte com destino para o “cérebro da alma”.
A unicidade da linguagem gráfica, a peculiar insubstituibilidade expressiva deste universo artístico, garante desde os primórdios a sua permanência e desenvolvimento. A ampliação dos suportes e dos instrumentos provocou sua ininterrupta renovação quer como produção seriada bem como para novas iconografias. Basicamente prevalece que a gravura autêntica não se configura apenas por meio da existência de uma matriz ou de uma imagem, mas pela presença de um ideário.
[...]
Maria Bonomi, 2000.
BONOMI, Maria (texto). I Bienal Argentina de Gráfica Latinoamericana.
Buenos Aires, Museo Nacional del Grabado,
26 sept. /26 nov. 2000. [Extraído de texto originalmente publicado em espanhol]
2000
INVASÃO
O ornato, manifestação da composição como ritmo, expõe a emoção artística em Maria Bonomi. Em sua pesquisa, concebem-se composições monumentais, memoráveis do sulco, que se pereniza. Pois não é a figura que importa, são as direções rítmicas que os sulcos constroem. Retendo de Livio Abramo a máxima de que o traço deixado por cada instrumento é uma linguagem, Maria Bonomi desenvolve os jogos rítmicos do traço-sulco, que é luz, luz pulsátil, luz que constrói. Já as suas primeiras gravuras a evidenciam interessada no sulco, mas também no uso: em bienal parisiense dos anos 60, ela insiste em expor a gravura na parede, lugar da pintura, contradizendo, com isso, a praxe da exibição em mesa. Pensando o uso, Maria Bonomi interroga a gravura quanto à dimensão; todavia, a composição rítmico-geométrica discute menos a dimensão do que a escala, pois, mesmo nas impressas em pequenos formatos, a composição lança a visão para fora do suporte.
O sulco é a invasão da matéria, tornada palpável pela resistência que o gravador nela encontra e à qual vence. É aqui que a emoção da gravura melhor se apreende: nos sulcos, Maria Bonomi declara sua emoção de gravar, sendo a matriz o essencial da obra do gravador, e a estampa não mais que a derivada da ação primitiva. A matriz pode ser construída tanto na madeira quanto no barro ou em outro material. Por sua vez, a matriz pode ser passada para os mais diversos suportes, como o papel, o alumínio, o poliéster, o concreto. Ir da mesa para a parede e desta para o painel de concreto implica o uso, concretizado como socialização da obra, voltada para o passante. Como os das xilogravuras, os sulcos das matrizes reproduzidas no concreto destinam-se a saguão do hotel. Com ripas e cordas, Maria Bonomi constrói os sulcos da Construção de São Paulo, gravura-relevo erguida em estação do metrô da cidade.
Leon Kossovitch e Mayra Laudanna, 2000.KOSSOVITCH, Leon; LAUDANNA, Mayra. Gravura no Século XX.
In: Gravura. Arte Brasileira do Século XX.
São Paulo, Cosac & Naify/Itaú Cultural, 2000.