Decênio de 2010
2011
Criação Incessante
A gravura nasce de uma técnica, uma das mais belas técnicas no campo das artes, e uma das mais éticas. Sua ética repousa em dois fundamentos. 

O primeiro é o da exigência comandada pela matéria, pelos instrumentos, pela precisão do gesto que compartilha força manual. Maria Bonomi contou algumas vezes os imperativos que Lívio Abramo, um de seus mestres formadores, impôs a ela: familiaridade com as goivas, formões, buris; com os entintadores; com a resistência e as seduções das matrizes. A mão devia aprender. 

Mas o cérebro, por sua vez, tinha que antecipar o resultado. Quando a matriz está pronta, aquilo que o papel dela recebe e depois revela, guarda sempre uma surpresa. Nesse momento, a progressão do processo artístico interrompe-se. Ocorre então uma ruptura decisiva. É quando se termina o efêmero e amoroso acasalamento do papel com a matriz, é quando ele, o papel, recebe as marcas da tinta, que a obra surge, final, definitiva.

Criação e execução, engenho e manejo juntam-se, portanto, numa dialética inseparável, mesclados num mesmo fluxo. Sem um desses termos, a gravura não existe. Assim, por essas características intrínsecas e rigorosas, o ofício do gravador impede a facilidade e a trapaça.

O segundo fundamento repousa sobre a natureza social da gravura. Como múltiplo, ela põe em cheque o original precioso e insubstituível. É ao mesmo tempo única e é numerosa. Ubíqua, ela se espalha por vários lugares, sem abdicar de si. Entrega-se ao mesmo tempo a tantos olhares, em tantas paragens.

Duas éticas, portanto: uma artesanal, outra social. A trajetória de Maria Bonomi conta uma fidelidade sem vacilo a ambas. A artista não se contenta em se debruçar sobre matrizes com precisão e rigor, mas segue todos os processos, até a impressão final, num controle cuidado. Também não se contenta em assistir, tranqüila, aos desmandos do mundo: denunciou, e denuncia, as injustiças sociais, os abusos políticos. Essa força convicta invade sua arte e está nela sempre presente, às vezes evidente, às vezes infiltrada no puro gesto criador.

Intensidade é um dos traços mais característicos de sua obra. Brota de conflitos que se resolvem em tensão. 

Numa entrevista recente, a artista declarou: “É o conflito da matéria com a idéia. Você sabe que um fator inesperado pode ser introduzido no trabalho, na medida em que você já tem em mente alguma coisa. E isto pode acontecer ou não. A gravura, enquanto resultado, se refere ao mundo visível, perceptível pela retina – e também pelo tato. Mas enquanto conceito, enquanto idéia, ela se conclui totalmente em nossa mente. Com isto, estou quase chegando a dizer que há uma matriz mental e há uma matriz realizada. Nós as transpomos para um terceiro suporte, através da técnica, uma materialidade que era mental, que era uma verdade nossa, que era uma imagem anterior ao que se fez. Assim, realizar uma gravura é, antes de mais nada, ter uma idéia gráfica. E possuir valores gráficos, antecedendo à sua materialidade. Quer dizer, a gravura poderia ser até considerada imaterial, e não necessariamente gravura.”

Esse imaterial, porém, está tanto na idéia quanto no gesto. De lá a seriedade, o rigor manual e mental, da gravura Mas de lá parte também o princípio de que a gravura situa-se muito além da técnica. “A gravura é um universo”, disse Maria Bonomi. 

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Na arte de Maria Bonomi a vocação social se dilata, como se dilatam também os princípios artesanais. Nada ali é pequeno. O gesto incisivo da gravadora, o sulco que traça, o vazio que impõe à madeira, as formas que recorta, são sempre monumentais e tendem para o ilimitado. As formidáveis estruturas formais que Maria Bonomi concebe estão tanto na pequenina imagem (que pode ser ampliada quantas vezes se quiser, pois se sustenta e guarda sempre a mesma força), quanto nos vastos painéis que criou para locais públicos. O que está no menor está no grande também, e pensar suas obras em escala é compreender bem superficialmente essa arte épica. 

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Maria Bonomi formulou, com segurança , que o artista gravador cai num exercício de limitação “se não lhe são passados o exercício do ideário e a atitude intrínsecas à gravura: a arrojada possibilidade investigativa que contém, que pode ser garimpada infinitamente. Tudo o mais é agônico.”

Está implícita aqui a idéia de que a gravura é um universo. Cortar, entalhar, extrair, marcar, sulcar, eis o cerne. Dele, a grande gravadora avança: a impressão sobre a folha se amplia, agiganta; o papel pode ser substituído pelo cimento que se torna o receptor dessas impressões. O metal recorta-se, remodelado, transformando-se numa espécie de escultura-gravura. O poliéster, o vidro, o espelho, o azulejo, latas de refrigerante, garrafas, uma fotografia significativa, tudo se torna alimento para as invenções.

A idéia de arte pública, que é tão cara a Maria Bonomi, pressupõe investimento público, espaço público, e energia coletiva. Essa energia é fornecida por arquitetos, paisagistas, urbanistas, engenheiros, operários, e colaboradores inesperados, cruciais, todos, para a elaboração da obra. 

No grande painel criado para a Estação da Luz (São Paulo), Maria Bonomi incorporou marcas de coisas perdidas há anos e descobertas (exatamente como num sítio arqueológico) quando se fazia a transformação do local: lembranças de velhos fantasmas descuidados. Mas foram ainda acrescentados muitos objetos trazidos por gente a mais diversa. O cimento conservou marcas e formas: no côncavo vazio, o ninho da colaboração e da memória.

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O ato gravador de Maria Bonomi é feito de liames, de laços, de passagens, que não respeitam ou se acomodam em definições de gênero artístico. A palavra ponte (título de uma de suas últimas obras) exprime bem a idéia de travessia entre margens de outro modo inaccessíveis. Encontramos o caráter primordial dessa arte entre as formas impressas no papel e na enorme parede, entre os talhes da madeira e do cimento, entre a superfície e o relevo, entre a gravura e a arte pública.

É assim que gravura, na obra de Maria Bonomi, nunca significa apenas uma técnica. A artista cria, de fato, um universo em contínua expansão. Nele, tudo se interliga, se responde, se sustenta. Ele existe graças ao formidável poder inventivo próprio à artista. 

Tudo parte de um sentimento amplo. Desde sempre. Não apenas as diferenças de tamanho entre as obras significam pouco. Suas posições na linha do tempo também são insignificantes, comparadas à poderosa unidade criadora de onde provêm e à qual pertencem. Basta ver as impressionantes ilustrações para Cobra Norato, de Raul Bopp, com seus claros domínios da mancha, do vazio, da estrutura: quem jamais poderia imaginar que essas obras fortes e maduras foram realizadas por Maria Bonomi quando tinha 11 anos? Basta atentar para a Paisagem urbana de São Paulo, feita aos 17 (época em que um crítico descrevia “formosa vista de São Paulo, de autoria da gentil senhorita Maria Bonomi”), e reveladora de um impressionante sentido de construção sólida e viva.

O essencial já estava lá, nessas primeiras obras. Lina Bo Bardi empregou a expressão metagênese, referindo-se à força criadora feita de transformações, que caracteriza Maria Bonomi. A própria gravadora afirmou que sempre faz o mesmo, e que, ao fazer o mesmo, sempre sai algo novo. Assim como o pequeno está no grande, o ontem está no hoje. 

Na vertigem fértil de sua criação, quantas vezes de uma obra nascem outras. Esse processo ininterrupto e fecundo tem um exemplo bem atual: está presente na Ponte. A grande xilo está fecundando as Águas sólidas, unidades metálicas leves e transparentes, ainda inacabadas em seu sentido pleno, mas em pleno desenvolvimento. Outra bela frase de Maria Bonomi, que parece conter tão bem sua obra: “Não creio que a realidade tenha começo e fim...”

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Há um evidente sentimento de amplidão, tanto no modo de ser pessoal de Maria Bonomi, quanto em suas obras. Ela trabalha de maneira muito cuidadosa, mas o resultado não se confina em minudências. Existem grandes artistas que se debruçam sobre pequenas superfícies, criando mundos ao mesmo tempo reduzidos e infinitos: Klee era assim, para citar um nome que Maria Bonomi mencionou entre os que admira. Outros, ao contrário, necessitam expandir-se na largueza da epopéia.

A energia que anima Maria Bonomi não a encaminha para a gestualidade, para as manchas veementes, para os rastros de tinta no papel. Ela tem, na xilo, seu meio de eleição (a gravura, disse ela, “nasce ‘dentro’ da madeira; não ‘sobre’ o papel. Madeira é receptiva, contém a energia.”). Ora, a xilo impõe disciplina. A sua prática canaliza o gesto para a estrutura. 

Isso combina com o espírito, desconfiado do aleatório e do desordenado, que preside às obras de Maria Bonomi. A energia poderosa dirige-se para a busca de uma geometria pessoal e pulsante.  Vibrando graças aos impulsos e às efervescências da criação, o rigor visual conduz a um resultado que contém sempre algo de heróico

Um poderoso sentido plástico vai ao essencial das formas, e as organiza com clareza intensa, conferindo-lhes uma autoridade que não se discute. Tal arte não poderia ficar confinada aos limites do papel, capazes de se ampliar até certo ponto, mas não até o painel gigantesco.

As longas hastes que se inclinam, cruzam-se e se apóiam umas nas outras, que ela criou em 1976 para a Igreja Mãe do Salvador (Cruz Torta) em São Paulo, sua primeira obra pública, inserem-se no universo da gravura. Os sucos paralelos que procuram um dinamismo tenso e geométrico, no painel do Esporte Clube Sírio; ou o magnífico percurso ondulado no pátio interno do Hotel Maksud Plaza, em São Paulo; ou as superfícies por ela criada para o metrô e para a estação da Luz; todas as suas obras monumentais, enfim, gravitam na galáxia gravura. Nela inserem-se ainda as instalações: a poesia simbólica de Sobre a essência: 7 horizontes do Homem;  o riacho movente de reflexos, feito de espelhos em fragmentos, que compõem o percurso da maravilhosa Passagem pela imagem.

De todos os modos, o destino público das obras de Maria Bonomi está marcado. Por uma razão simples. É a seguinte: suas obras instauram o espaço que a envolve, definem o lugar em que estão. Impõem seu entorno. Metamorfoseiam o lugar em que se situam. Criam a própria atmosfera na qual se envolvem. Expandem-se em aura. Isso provém de que, nelas, tudo é essencial. Foram banidos quaisquer detalhes agradáveis ou ornamentais, para atingir a austera plenitude de uma forma poderosa e decisiva.

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Esta mostra é a mais completa até hoje realizada sobre a arte de Maria Bonomi. Reuniu um número elevado de obras, não tanto para traçar um percurso cronológico (embora muita produção de juventude esteja presente, várias das quais nunca expostas até agora), mas para revelar a permanência de suas preocupações e os laços que as une.

É preciso assinalar, porém, que suas importantes criações cenográficas, por questões de espaço, não puderam ser incluídas. Trata-se certamente da lacuna maior. É verdade também que, por seu caráter específico, e pela raridade dos documentos conhecidos, elas exigiriam pesquisas e estudos detalhados, ainda por serem feitos. Esperemos que, no futuro, uma exposição cuidadosa sobre esse tema – Maria Bonomi eo teatro - venha a ser realizada.

Nossa concepção (digo nossa não como plural de modéstia, mas com o sentimento de que ela brotou de uma equipe), divide-se da seguinte maneira.

Uma sala é consagrada à arte monumental. Nela, há uma projeção de fotos das obras que, por razões evidentes, não podem ser deslocadas. Nessa mesma sala são apresentadas algumas matrizes que são admiráveis, verdadeiras obras de arte por si mesmas.

Na sala circular superior (que batizamos de “o útero”), reunimos criações que, de algum modo, possuem um caráter “feminino”. 

Na sala circular inferior (o “calabouço”), está a produção vinculada às convicções políticas da artista.
A sala maior (o “panorama”) revela o amor essencial pela xilogravura, técnica nuclear em seu percurso, mas ainda suas incursões pelo desenho, pela lito, pelo óleo.

Maria Bonomi realizou algumas gravuras em versões diversas, com variações sobretudo no colorido. Tomei o partido de mostrar todas essas versões, pelo que segue: as variantes cromáticas são as encarnações de uma mesma obra. O conjunto de tais metempsicoses forma uma Ur-obra, que está para além do sensível, e da qual todas as suas manifestações participam. São efeitos fragmentais de uma transcendência formada por elas mesmas, e que as ultrapassam. 

O impacto de uma série exposta em seqüência é enorme, inda mais se acompanhadas pela matriz, (que participa dessa transcendência original, como geradora, mas também como modo em relevo, escultórico, da forma que foi impressa). Diante disto, se deixássemos apenas uma gravura extraída da série, estaríamos apresentando antes uma amostragem do que a obra plena. 

Enfim, em espaços exteriores, estão presentes algumas instalações e esculturas.

Quero assinalar aqui a Nu Design (especialmente Julio Mariutti, Daniel Sene e Rodrigo Brancher) que transformou em soluções expositivas as concepções norteadoras desta mostra: a jovem equipe teve, com esta mostra, uma excelente ocasião para adquirir experiência e exercer sua inventividade. Quero também sublinhar a coordenação e produção de Lena Peres Oliveira, verdadeira locomotiva do projeto, sem a qual ele nunca teria chegado a bom termo. Acima de tudo, quero evocar, por fim, a presença constante e iluminadora de Maria Bonomi.

Jorge Coli, 2011
Curador
Bonomi: Entre a Gravura e a Arte Pública